"E embaixo, a realidade prima/tão violenta, que ao tentar aprisioná-la/toda imagem rebenta.” O célebre verso de João Cabral de Melo Neto, grafado em letra firme, clara e desenhada, abre a fotobiografia do poeta pernambucano, organizada por Eucanaã Ferraz e com pesquisa de Valéria Lamego.
O poema funciona como uma senha para a “Fotobiografia de João Cabral de Melo Neto” (Editora Verso Brasil), indicando que o poeta era bem menos cerebral, impessoal e algébrico do que gostaria de ser.
Embora fizesse uma poesia com coisas, João tinha alma e era confessional em fotos, entrevistas e documentos. Ao longo do livro, constituído por 500 imagens, mais da metade inéditas, o leitor é convidado a um passeio pela vida e pela obra de João Cabral, do nascimento, no Recife, em 1920, até a morte, no Rio de Janeiro, em 1999.
Passa por 13 países onde o poeta serviu como diplomata, mas com primazia para a Espanha, tão crucial em sua poesia pelas conexões com o Nordeste. E registra o encontro com os artistas amigos Clarice Lispector, Vinicius de Moraes, Fayga Ostrower, Juan Miró e Franz Weissmann, entre outros.
O poço em que o poeta tomava banho na infância, os colegas de futebol, as amizades, as obras publicadas na editora artesanal Livro Inconsútil e os desenhos de Juan Miró dedicados ao poeta ganham uma impressionante ilustração com os versos de João Cabral.
Em poema sobre o nascimento, “Autobiografia de um só dia”, João Cabral escreve: “No Engenho do Poço não nasci;/minha mãe, na véspera de nascer,/veio de lá para Jaqueira/ que era onde queiram ou não queiram/os netos tinham de nascer/no quarto-avós, frente a maré. (…) Nasci no quarto-dos-santos/sem querer, nasci blasfemando,/pois são blasfêmias sangue e grito/em meio a freirice de lírios,/mesmo se explodem (gritos, sangue),/da chácara entre marés, mangues”.
João Cabral admirava a poeta inglesa Marianne Moore. Mas, contrariando a apologia da impessoalidade, ele estendia essa afinidade a ponto de levar sempre um retrato da poeta. Eucanaã flagra no fato e no poema “Dúvidas apócrifas de Marianne Moore” uma admissão indireta do singular sentido confessional da obra de João Cabral: “Sempre evitei falar de mim, falar-me./Quis falar de coisas./Mas na seleção dessas coisas/não haverá um falar de mim?”.
Na entrevista a seguir, Eucanaã Ferraz fala sobre a pesquisa, a relação esquiva de João Cabral com a confissão e como a fotobiografia contribui para ampliar a visão sobre o poeta pernambucano.
Como fazer a fotobiografia de um poeta avesso a confissões sentimentais e que reivindicava ser autor de uma poesia impessoal?
Existem três aspectos a considerar. O primeiro é que João Cabral é menos confessional do que ele gostaria. Se qualquer pessoa folhear a fotobiografia, perceberá que os poemas acompanham, ilustram e dialogam de uma maneira surpreendente com as imagens. Ele não é confessional de uma maneira tradicional. Mas ele é muito memorialístico. Você pode acompanhar a infância, os poços onde ele nadava, os rios, a paisagem, as touradas, as caminhadas pelas ruas.
E qual seria o segundo aspecto confessional?
João concedeu inúmeras entrevistas em que fala sobre múltiplos aspectos de sua vida: a dor de cabeça, o gosto pelo futebol, os amigos. E sempre com um senso de humor muito agudo. Ele transformou o mau humor em algo bem-humorado e criou um personagem para brincar com isso. As entrevistas dele são engraçadíssimas. E o terceiro são as fotografias. Uma pessoa que se deixa fotografar tão à vontade sabe que aquele registro será levado adiante e fará parte algum dia de uma biografia. Se ele fosse realmente tão avesso à biografia, ele não se deixaria fotografar com tanta frequência em inúmeros momentos do cotidiano.
Existem muitas imagens de João Cabral?
Sim, está registrada a trajetória de poeta, as viagens pelo Itamaraty, os lançamentos de livros, toda uma agenda pública por vários países. Eu não coloquei mais registros confessionais porque não quis. Separamos 500 imagens. Se ele achasse ridículo, por que sempre levava um porta-retrato com a foto da Mariane Moore, que ele admirava muito. Claro que as fotos não revelam a verdadeira intimidade, não temos acesso a esta dimensão da vida dele. Mas, de qualquer maneira, essas fotos revelam que ele não recusava a intimidade.
Então, João Cabral não era o homem sem alma?
Ele quis fazer uma poesia sem alma, descarnada, voltada para a matéria. Não existe saudade, tristeza ou melancolia em João Cabral. Não se compara com Drummond, Murilo Mendes, Vinicius de Moraes. Esse é um projeto poético que ele tem todo o direito de inventar e realizou de maneira magistral.
Durante a pesquisa, vocês descobriram muito material inédito?
Sim, das 500 imagens, cerca de metade é inédita. Existem algumas coisas preciosas. Publicamos dois desenhos de Juan Miró dedicados a João Cabral. E, também, a reprodução de um catálogo do artista plástico Franz Weissmann, onde foi publicado um famoso poema de João Cabral, escrito especialmente para o folheto. São pequenos tesouros.
João Cabral é consagrado, mas ele é um poeta para poetas ou pode ser apreciado por todos?
Não sei se existe um poeta para todos. A geração da poesia marginal não tinha muita afinidade com João Cabral. A minha, da década de 1990, foi muito marcada pela força da poesia de João. As pessoas leem tão pouco poesia. Mas acho que, quando uma pessoa chega a ler poesia, ela está em um estágio especial, em relação a outros leitores, que a torna apta a apreciar João Cabral. O importante é que ele é um gigante e está lá no momento em que estivermos preparados para o encontro de poesia. É um gigante, não apenas no Brasil, mas em qualquer língua. Você pode não perceber, mas ele está lá, da mesma maneira que Drummond, Vinicius, Cecília Meirelles. E os gigantes nos ajudam a ser poetas e pessoas melhores.
O que mudou em sua visão depois de conhecer as outras facetas de João Cabral reveladas pela fotobiografia?
Olha, embora eu tenha feito uma tese de doutorado sobre João Cabral, eu conhecia pouco o personagem. Ele era muito engraçado, muito vibrante, muito vivo com a família, a poesia, os livros, a arte e o Brasil. Era direto, não tinha intermediação em suas relações. Não gosto de João Cabral porque ele se parece, necessariamente, comigo. Depois de mergulhar em sua vida, descobri que ele é um grande amigo meu.
“Fotobiografia de João Cabral”
• Organização de Eucanaã Ferraz
• Ed. Verso Brasil (224 págs.)
• R$ 128