Jornal Estado de Minas

OBRA PRIMA

Lançado há 50 anos, disco 'Construção', de Chico Buarque, poderia não ter existido


No início da década de 1970, os estúdios das gravadoras brasileiras passaram por um processo de transformação. Equipamentos importados da Europa e dos Estados Unidos ampliaram a capacidade e a qualidade da produção fonográfica nacional.





O processo, no entanto, não ocorreu sem percalços. Tais contratempos quase impediram a existência do álbum Construção, de Chico Buarque, lançado há 50 anos e um marco na carreira do artista.

O ano de 1971 mal havia começado e Roberto Menescal, então diretor artístico da PolyGram, empresa pertencente a Phillips, recebeu uma missão: viabilizar a feitura de Construção, primeiro álbum de Chico no retorno ao Brasil após quatorze meses de autoexílio na Itália em meio à ditadura militar brasileira. A intenção era fazer um disco que, para além do sucesso entre os críticos musicais e admiradores da MPB, pudesse também alcançar êxito nas vendas.

"Nós não entendíamos como um artista do calibre do Chico vendia 30, 40 mil LPs. A gente queria mudar isso rapidamente", disse Menescal à BBC News Brasil.

Por isso, quando o maestro Rogério Duprat, um dos personagens centrais do movimento tropicalista ao lado de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé e Torquato Neto, solicitou a Menescal que reunisse uma orquestra com cerca de 60 músicos, o diretor artístico viabilizou o pedido sem objeções.





Figura de relevo na Bossa Nova, que havia sacudido o cenário musical brasileiro na década anterior, ele havia deixado os palcos para se dedicar aos bastidores a convite de André Midani (1932-2019), então diretor da gravadora.

No estúdio, Menescal se deparou com uma mesa de quatro canais, novidade na época.

"Fui misturando e descobrindo a melhor maneira de fazer junto da equipe que me acompanhava", relembra.

A gravação ocorreu sem grandes problemas. Na mixagem, quando são reunidos os áudios captados pelos diferentes canais — a orquestra, a voz de Chico, os instrumentos —, um erro quase colocou tudo a perder.

"Nessa de apertar botão desconhecido, um auxiliar de estúdio deletou toda a gravação da orquestra do Duprat. Eu não sabia o que fazer. Por um momento achei que o disco não fosse sair", conta Menescal.





O diretor artístico, então, mapeou as possibilidades. Não havia chance de recuperação do áudio excluído.

"Precisava gravar com a orquestra outra vez, mas não tínhamos verba suficiente para chamar os músicos novamente. O Midani não ia permitir", conta.

Depois de muito pensar, veio a solução.

"Fiz uma lista de discos que estavam sob minha responsabilidade. Tinha Elis Regina e outros. Tirei um pouco da verba destinada a esses trabalhos e chamei a orquestra de novo para regravar tudo. No fim, deu certo. Nem o Chico sabe dessa história", completa.

De fato, deu certo. Construção alcançou sucesso instantâneo. Mais de 140 mil cópias foram vendidas nas primeiras quatro semanas após o lançamento. Para atender tal demanda, a Phillips precisou contratar duas gravadoras concorrentes para ajudar na prensagem do álbum.





Chico passou a disputar as paradas de sucesso com Roberto Carlos, imbatível naquele período.

"Esse foi o trabalho que transformou Chico em um grande vendedor de discos, algo que se repetiu em outras obras, como Meus Caros Amigos (1976). Não que ele faça algo com esse intuito comercial. Mas a partir daí tudo mudou", ressalta Menescal.

O álbum da maturidade

Construção é descrito por estudiosos e parceiros musicais de Chico como uma das obras mais importantes de sua carreira. Entram nessa análise o contexto político no qual o álbum foi concebido e as composições apresentadas pelo artista. A verve criadora do jovem que ainda não havia sequer completado 27 anos anuncia novos caminhos, menos lírica e mais preocupada com a realidade do país.

Além de Duprat, os arranjos também foram feitos sob a direção musical de Magro (1943-2012), um dos fundadores do MPB4, cuja formação original (Miltinho, Magro, Aquiles e Ruy Faria) acompanhou Chico em gravações de discos e shows no Brasil entre 1966-1974. Nesse período, alguns chamavam o grupo de MPB5, tamanha a simbiose entre eles.





Participam também de Construção o maestro Tom Jobim e Vinícius de Moraes, em um momento de afirmação nas parcerias musicais entre o jovem compositor e os expoentes da Bossa Nova.

Em uma entrevista a Geraldo Leite em 1989, Chico explicou as condições para a elaboração da obra.

"Construção teve uma criação que esteve condicionada ao país em que eu vivi. Existe alguma coisa de abafado, pode ser chamado de protesto, e eu nem acho que eu faça música de protesto....mas existem músicas que se referem imediatamente à realidade que eu estava vivendo, à realidade política do país. Até o disco da samambaia (Chico Buarque, 1978), que já é o disco que respira, o disco onde as músicas censuradas aparecem de novo. Enfim, a luta contra a censura, pela liberdade de expressão, está muito presente nesses cinco discos dos anos 70."

Construção é subsequente a Chico Buarque de Hollanda - Nº4, feito em uma ponte aérea Brasil-Itália, lançado em 1970 e cujo resultado final não agradou Chico.

O LP foi produzido por imposição contratual, já que o compositor havia recebido um adiantamento da Polygram para se manter na Itália em um momento de penúria.





"Tinha que gravar as músicas para pagar o dinheiro que eu tinha pedido emprestado. É um disco feito por necessidade. Eu precisei passar por isso para chegar a Construção, que já é um disco mais maduro como compositor, como homem e ser humano", disse na mesma entrevista.

Na volta ao Brasil, Chico lançou um compacto simples com duas músicas: Apesar de Você e Desalento. O compacto foi liberado pela censura e fez enorme sucesso, até que a ditadura militar (1964-1985) entendeu o recado disfarçado em uma suposta briga conjugal e decidiu proibir a veiculação da primeira música, que só seria liberada no fim da década de 1970. Desalento, por sua vez, foi liberada e integrou Construção sem problemas.

Outras canções que estão em Construção enfrentaram problemas com a censura. No sistema de informação do Arquivo Nacional, que armazena documentos do regime militar no Brasil, é possível encontrar os vetos para algumas canções. Em Cordão, a censura identificou um "protesto contra a ordem vigente" e alegou que o verso "Nas grades do coração" tinha "sentido dúbio". Chico substituiu o verso por "As portas do coração".





Deus lhe Pague, uma crítica ao controle dos militares e à opressão sofrida no país, foi vetada por "parecer um 'recado' com duplicidade de sentido, que tanto pode ser dirigido a alguém ou algo abstrato". Posteriormente, a música foi liberada sem modificações.

"O advogado da Phillips (João Carlos Muller Chaves) vivia em Brasília. Eu mesmo fui falar com os censores para que as músicas fossem liberadas. Era um troço complicado", lembra Menescal.

Cotidiano, outro clássico desse LP, tem a rotina conjugal marcada pelos rituais envolvendo a boca - "E me beija com a boca de hortelã(...)/e me beija com a boca de café(...)/e me calo com a boca de feijão". Em Valsinha, Chico convenceu Vinícius de Moraes a abandonar o nome "valsa hippie", filosofia libertária que começava a perder força naquele momento. A troca de cartas entre os dois mostra que Chico, ainda que muito mais jovem, fez alterações significativas na letra do poeta.

"Vou escrever a letra como me parece melhor. Veja aí e, se for o caso, enfie-a no ralo da banheira ou noutro buraco que você tiver à mão", escreveu Chico.

Samba de Orly foi feita com Toquinho e Vinícius. Apesar de incluído na tríade, os versos de Vinícius, adicionados quando a letra já estava praticamente pronta, foram censurados. "Pela omissão" deu lugar a "Pela duração". "Um tanto forçada" foi substituída por "Dessa temporada".





"Vinícius teve a letra tesourada, mas ganhou a parceria eterna", disse à BBC Brasil Wagner Homem, autor do livro História das Canções, sobre a obra de Chico.

Outra curiosidade é que Toquinho entregou a música a Chico quando estava voltando da Itália, em fins de 1969. Mas o aeroporto de Fiumicino, em Roma, era desconhecido dos brasileiros, diferente de Orly, na capital francesa, povoada por exilados brasileiros.

Fecham o disco Olha Maria, com o piano marcante de Tom Jobim e parceria com Vinicius, Minha História (versão da música italiana Gesù Bambino) e Acalanto, feita para a filha Helena Buarque.

"Nós éramos muito jovens, não havia muita responsabilidade. Mas o Chico já sabia o que fazer, o que dizer e esse álbum é prova disso. É genial e inesquecível, tanto que estamos aqui falando dele", disse Miltinho, do MPB4, à BBC News Brasil.





As vozes do conjunto aparecem nas músicas Deus lhe Pague, Desalento, Construção, Samba de Orly e Minha História.

Esteticamente, a foto de capa também já foi fruto de análise. Nela, Chico aparece com uma expressão séria, como se quisesse mostrar feição distante do jovem de A Banda. Autor da imagem, o fotógrafo Carlos Leonam afirma que o retrato foi feito sem essa intenção.

"Adoram conjecturar sobre tudo que envolve o Chico. Fiz essa foto enquanto jogávamos futebol de botão em seu apartamento na Lagoa (Rodrigo de Freitas): eu, ele, o (ator) Hugo Carvana... Eu andava com uma câmera e fazia retratos sem compromisso. Quando a Polygram me pediu para fazer uma foto do Chico, mostrei algumas opções. Menescal e Aldo Luiz gostaram dessa. Mas não tinha nenhuma mensagem subliminar", disse o fotógrafo à BBC News Brasil.

Aldo Luiz foi responsável pelo design gráfico do LP. Ele conta que estava desempregado no início de 1971 e que Construção foi o seu primeiro trabalho na Polygram.

"O Chico é muito simples e tentei reproduzir isso. De alguma maneira, a ditadura também nos impelia algo mais sóbrio, por isso aquele tom acinzentado no fundo do retrato e o marrom como cor preponderante. A verdade é que eu acabei pegando carona em um álbum fundamental para a nossa música", conta Aldo à BBC News Brasil.





Nos anos seguintes, ele assinou outras capas icônicas, como Krig-ha, Bandolo (Raul Seixas), A Tábua de Esmeralda (Jorge Ben) e Cinema Transcendental (Caetano Veloso).

O 'jabá' por 'Construção' nas rádios

Construção foi liberada sem qualquer restrição da censura. Wagner Homem conta que o advogado da Philips pediu para que a música fosse vetada como forma de provocação. A estratégia deu certo e a canção passou sem problemas, para a surpresa de todos.

A música, apontada pela revista Rolling Stone como a melhor já feita no país em uma eleição de 2009, após análise de comissão com 92 pessoas, entre críticos, pesquisadores e produtores, é composta de versos dodecassílabos e terminados em proparoxítonas.

O roteiro é conhecido: o operário, sujeito-máquina, nos momentos que antecedem sua morte trágica. Como pano de fundo, a canção aborda o suposto milagre econômico brasileiro do período, os edifícios que eram erguidos desenfreadamente pelas cidades do país. Chico faz um amálgama desses elementos para construir uma narrativa densa e crítica, em forma de canção, sem parâmetros no cancioneiro nacional.





Em uma entrevista publicada em 1973 na revista Status, Chico explica como se deu a elaboração da música.

"Em Construção, a emoção estava no jogo de palavras. Agora, se você coloca um ser humano dentro de um jogo de palavras, como se fosse um tijolo, acaba mexendo com a emoção das pessoas. Mas há diferença entre fazer a coisa com intenção ou — no meu caso — fazer sem a preocupação do significado", disse.

Ele prossegue.

"Se eu vivesse numa torre de marfim, isolado, talvez saísse um jogo de palavras com algo etéreo no meio, a Patagônia, talvez, que não tem nada a ver com nada. Em resumo, eu não colocaria na letra um ser humano. Mas eu não vivo isolado. Gosto de entrar no botequim, jogar sinuca, ouvir conversa de rua, ir ao futebol. Tudo entra na cabeça em tumulto e sai em silêncio. Porém, resultado de uma vivência não solitária, que contrabalança o jogo mental e garante o pé no chão. A vivência dá a carga oposta à solidão, e vem da solidariedade — é o conteúdo social."

A canção de quase sete minutos fez enorme sucesso, inclusive no rádio.

"Era algo inédito, porque as rádios só tocavam músicas de até três minutos, algo que se mantém até hoje. As pessoas queriam cortar um pedaço e eu precisava explicar que aquilo não era possível", conta Menescal.





"Outro problema era a letra, dificílima de ser decorada. Para ajudar na veiculação, coloquei-a na contracapa do LP. Todo mundo que pegava o vinil tinha acesso à letra rapidamente", complementa.

O sucesso da canção, segundo o próprio Chico, também foi resultado do pagamento de "jabás" de sua gravadora às emissoras de rádio, algo que ele só foi descobrir duas décadas após o lançamento do álbum.

"Meu antigo patrão me explicou que a questão do jabá sempre existiu. Eu disse que sabia, é claro, mas que a coisa hoje é muito mais violenta. E, então, veio a revelação: 'Você lembra do sucesso de Construção, uma música difícil, pesada, muito longa para a época, e que tocava no rádio o dia inteiro? Pois paguei muito jabá por ela''', contou Chico em uma entrevista à revista América, do Memorial da América Latina, em 1989.

Após 50 anos, Construção pode ganhar uma nova roupagem nos próximos meses. No fim do ano passado, o jornalista Ancelmo Gois publicou nota em sua coluna no jornal O Globo sobre um projeto de espetáculo sobre o álbum, com orquestra e turnê programada para cidades como Milão e Londres.





Questionada pela BBC News Brasil sobre a possibilidade da iniciativa sair do papel, a assessoria de imprensa de Chico Buarque afirmou que tudo não passa de uma "ideia ventilada": "Por enquanto não passou disso, apenas uma ideia, pois com a pandemia tudo parou."


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