Jornal Estado de Minas

LITERATURA

Diplomata transforma em livro drama de crianças que testemunhou na Amazônia



Tinha entre 10 e 12 anos. De seu passado, pouco sabia. Entre as vagas lembranças estavam os apelidos dos sete irmãos; a mãe, Cinara ou Cenélia, não estava certa do nome; além do Rio Curiau. Correndo inteiramente em território brasileiro, esse curso d’água brota da alta floresta amazônica, ao Norte do Amapá, rasga o estado, até se lançar sobre o Rio Amazonas, nas proximidades da capital, Macapá. 

Foi essa referência geográfica que deu a Ana Beltrame, cônsul-geral do Brasil em Caiena, capital da Guiana Francesa, entre 2008 e 2013, a certeza de que era brasileira aquela garota moreninha miúda, franzina, de características indígenas, acolhida no hospital local. Estava “embuchada” e com saúde extremamente precária. Desconhecia o próprio sobrenome. Dizia se chamar Dendiara; Dendy, chamavam-na os franceses. 





É na busca dos autores do crime e da violência cometidos contra Dendy, assim como a procura por sua origem e família, que Ana Beltrame constrói a obra “O passeio de Dendiara” (Editora Tema), referência à caminhada diária para acompanhar a criança grávida da ala feminina para a ala infantil do Hospital de Caiena, momento em que, pouco a pouco, ganha a confiança dela.

Com o apoio de uma rede informal de inteligência, da qual participam indígenas, ribeirinhos, brasileiros clandestinos e franceses, Ana Beltrame lidera a investigação. O fio que se revela do novelo de um drama social violento não diz respeito apenas a Dendy, que é ficcional. 

A personagem é representação de uma realidade brutal, doída, de milhares de crianças brasileiras da região amazônica que são empurradas pela fome e o desespero para o garimpo ilegal, que adentra a floresta em território da Guiana Francesa. 

Atividade de alto risco, não apenas pela contaminação com mercúrio e pelos perigos e doenças da floresta, mas pelas relações e códigos morais e de justiça na fronteira movediça em que tangenciam sobrevivência, ilegalidade e códigos de justiça próprios. 





Dendy, com diferentes batismos, são muitas e, sobretudo, são crianças originárias de famílias com quem Ana Beltrame interagiu enquanto esteve à frente da representação brasileira em Caiena. “Dendiara não existe, mas o contexto e os fatos são verdadeiros. O vocabulário dela é o de uma criança daquela região, e eu presenciei muitas delas vivenciando cada um dos fatos narrados”, afirma Ana Beltrame, atualmente embaixadora do Brasil no Uruguai. 

Toda a história se passa numa região desconhecida pelo mundo e dos brasileiros, essa porção amazônica do estado do Amapá, em sua fronteira com a Guiana Francesa, delimitada pelo Rio Oiapoque e, ao Norte, pela floresta mais inóspita e impenetrável, neste que constitui o Parque Nacional das Montanhas do Tumucumaque. 

Ao coração dessa selva, em que estão fincados os marcos delimitadores entre os territórios brasileiro e francês, é transportado o leitor. “Pelo topo dessas montanhas, das mais hostis e inacessíveis do mundo, passa a linha imaginária da fronteira do Brasil, primeiro com o Suriname e, depois, com a Guiana Francesa. A linha imaginária é materializada, no chão, por sete marcos de cimento que, de tempos em tempos, as Comissões Demarcadoras de Limites, com técnicos brasileiros e franceses, fazem uma vistoria para ver se os marcos não caíram ou para limpar o mato crescido ao redor. E também para implantar os chamados ‘marcos de adensamento’, que são pequenas pilastras de cimento colocadas entre os marcos principais. Em geral, a viagem é feita de helicóptero, com o apoio dos Exércitos brasileiro e francês”, descreve a autora.





Em narrativa riquíssima, propícia ao etnógrafo, a autora desvenda o bioma, as culturas, os alimentos, o linguajar e os meios de vida que se constroem em torno do garimpo ilegal – como o Putanic, barco-prostíbulo que viaja pelos rios do Amapá e da Guiana Francesa, ironicamente apelidado em referência ao Titanic. Carrega sexo, forró e cerveja aos garimpos da região. 

Há atravessadores, os serviços de transporte, o comércio de alimentos e de mercúrio. Tudo pago a peso de ouro. Elevada à potência, a miséria humana emerge pela narrativa da colonização da região e entre cenários por que transitam as personagens, frequentemente instadas a enfrentar dilemas existenciais. É assim que a “madrinha”, que “ganha” da mãe vulnerável a filha Dendiara, que na ocasião tinha não mais de 4 anos, arrasta consigo a menor ao mesmo percurso infortunado que possivelmente atravessou em sua própria infância. 

Cozinheira e comerciante no garimpo ilegal, à noite prostituindo-se, guia a criança “afilhada” pela escravidão na selva, paga com a comida de cada dia. E, diante da gravidez de Dendy, a madrinha opta por salvá-la da selva, sob risco de ser executada, deixando-a na estrada entre Caiena e Saint-Georges, esta, pequena cidade na margem francesa do Rio Oiapoque. 





Ali, caminhando lentamente na direção norte pelo acostamento da estrada até a barreira de polícia de Bélizon, perto da ponte sobre o Rio Approuague, a criança do sexo feminino se rende aos agentes da polícia francesa. “Encontrada”, como quis a madrinha, levada ao hospital, Dendy narra à autora do livro o infortúnio de tantas infâncias brasileiras. 

Leia a seguir entrevista com a autora: 
 
Quando a senhora decidiu escrever a história de Dendiara, representação de tantas crianças brasileiras da fronteira amazônica entre o Amapá e a Guiana Francesa?
Quando servia em Caiena, percebi que quase ninguém conhecia nem o Amapá nem a Guiana Francesa. Eu recebia correspondência dirigida a Gana e a outros lugares do mundo. Então, achei que tinha de escrever algo sobre aquela região tão desconhecida e com tantas histórias de brasileiros que vivem na fronteira do Oiapoque. O que escrever, ainda não sabia, até que comecei a prestar assistência consular a diversas crianças. A personagem Dendy não existe. Ela é uma mistura de diversos perfis de crianças brasileiras que encontrei, justamente para não identificar nenhum menor de idade. As crianças que ajudei, que eram abusadas nos garimpos, abusadas em casa, faziam trabalho escravo, continuam lá. Quando comecei a atender crianças abusadas, achei que o tema deveria ser abuso infantil.

Sem conseguir sustentar os oito filhos, o mais novo deles cego, a mãe de Dendiara, viciada em drogas, doa a filha para a “madrinha”. Essa prática é frequente? 
Sim, é um fenômeno muito comum em algumas regiões do Brasil. Pais desesperados e sem ter como sustentar os filhos entregam um deles, na esperança de que tenha mais oportunidades na mão de outras pessoas. As mães fazem isso com muita dor, rezando para que tenham “dado” a criança para a pessoa certa. Conheci mães que haviam doado, ainda que numa esperança desconfiada de que a criança estivesse sendo bem criada. Algumas vezes, as crianças se lembram de ter vivido com outra mãe e irmãos. E a mãe de criação, em geral, também não esconde e se faz chamar de madrinha. Vi casos bem-sucedidos. E vi casos dramáticos.





Em sua obra, as personagens que trabalham no garimpo ilegal realizado na Guiana Francesa são brasileiras. Há outras nacionalidades na Guiana Francesa operando nessa atividade ilegal?
Os brasileiros detêm competência para sobreviver na floresta tropical úmida. Não é para qualquer um. O caboclo está habituado, são gerações vivendo ali. Ele também domina essa tecnologia primária de extrair ouro com bateia, sugador e com mercúrio: passa de pai para filho. É uma coisa que os brasileiros sabem. Então, junta um grupo, que sai mato adentro procurando ouro. Quando em território brasileiro, começa a procurar sem a permissão do Ministério das Minas e Energia, sem autorização do Ibama. Quando na Guiana, ao encontrar sinais de ouro, outros garimpeiros atravessam o Amapá, cruzam o Rio Oiapoque e entram na Guiana Francesa pela floresta. Metade da Guiana é parque nacional, zona protegida da França. A polícia reprime, mas depois os garimpeiros voltam. Aqueles homens ficam no mato procurando ouro. Chegam lá mulheres que começam a prestar serviços. Algumas garimpam, fazem papel de enfermeiras, cozinheira e prostituta. O mais comum é ser cozinheira e prostituta. Mas conheci também mulheres que foram para ser cozinheiras e não aceitaram ser prostitutas. 

Dendiara é uma criança quando levada ao garimpo. E ali foi prostituída. Com que frequência esse tipo de crime ocorre?
Dendiara ajudava na cozinha, um trabalho pesado, pois lava panela grande com água poluída pelo mercúrio, sem sabão, com areia. Era analfabeta e não conhece o mundo para além da selva. E era abusada. Há meninas hoje nessa situação lá. Em qualquer garimpo clandestino vai haver prostituição e vai haver menores na prostituição. Isso em várias regiões do Brasil, não apenas no Norte. Há nesses garimpos uma supervalorização da menina novinha, até porque, com a gravidez e as doenças venéreas, as mulheres envelhecem muito rápido. O garimpeiro, em si, em geral não vê nada errado em ter relações com meninas mais jovens. Acham que é um direito. Muitos deles sofrem também da urgência de saber se estarão vivos amanhã, pois o garimpo é muito violento. Basta a suspeita de que o garimpeiro está escondendo ouro para que seja justiçado. E tem as doenças tropicais, tem a onça, tem a cobra. De certa maneira, ele também é uma vítima à sua maneira. É uma realidade brutal, de violência, inclusive em relação aos índios e quilombolas que vivem na floresta. Quanto mais garimpo, mais envenenamento das águas e do meio ambiente, mais ricos ficam os atravessadores e mais pobres ficam os municípios, que não arrecadam nada e têm de acolher crianças abusadas. E quanto mais garimpo ilegal, mais pobre é a Amazônia. 
 
(foto: Reprodução)
“O passeio de Dendiara”
• Ana Beltrame 
• Tema Editorial, 192 págs
• R$ 40 

 

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