Por onde anda Autran Dourado? Com certeza, não é pelas ruas de Belo Horizonte.
Quem anda pela capital mineira pode se sentar ao lado da estátua de Carlos Drummond de Andrade; ter um encontro marcado com Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Hélio Pellegrino e Paulo Mendes Campos; ou ter uma conversa com Guimarães Rosa, Henriqueta Lisboa, Pedro Nava, Roberto Drummond, Murilo Rubião.
Circular pelos caminhos da Linha Verde é também a certeza de se deparar com viadutos que ostentam os nomes desses e de outros escritores mineiros. Mas ninguém verá qualquer monumento em homenagem ao escritor Autran Dourado.
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Mas isso não era o suficiente para que ele se acomodasse. Naquele dia de dezembro, o autor enviava uma carta ao então senador Fernando Henrique Cardoso acusando de “um crime contra o idioma brasileiro” o Acordo Ortográfico que estava em vias de ser votado pelo Congresso. E declarava: “Literatura é palavra carregada de sentido, é ela que renova e vivifica a língua e dá expressão a um povo. Um povo sem expressão própria não existe”.
Mas isso não era o suficiente para que ele se acomodasse. Naquele dia de dezembro, o autor enviava uma carta ao então senador Fernando Henrique Cardoso acusando de “um crime contra o idioma brasileiro” o Acordo Ortográfico que estava em vias de ser votado pelo Congresso. E declarava: “Literatura é palavra carregada de sentido, é ela que renova e vivifica a língua e dá expressão a um povo. Um povo sem expressão própria não existe”.
UFMG
Esse é um dos muitos documentos que integram o espólio do escritor, que foi incorporado ao Acervo de Escritores Mineiros da Universidade Federal de Minas Gerais em 2017. Trata-se de um rico conjunto de documentos: pesquisas históricas usadas na composição dos livros, esquemas das futuras narrativas, diversos artigos publicados em jornais e revistas, cartas trocadas com vários escritores de renome do Brasil. São arquivos em que se tornam visíveis as múltiplas faces do autor e a sua viva atuação pública.
Mas essa ausência de Autran pelas paisagens belo-horizontinas surpreende principalmente se nos lembrarmos de que ele talvez tenha sido o autor que escreveu de modo mais sistematizado sobre Minas Gerais. São quase 30 livros que, com poucas exceções, narram a história mineira desde o Ciclo do Ouro até meados do século passado.
Nesse conjunto, há livros, como “Os sinos da agonia”, ambientados em cenários rurais e escravocratas. Ou títulos como “Um artista aprendiz”, que tratam do cenário moderno e urbano de Belo Horizonte, com os encontros boêmios dos aspirantes a intelectuais (incluindo a boemia bem comportada do grupo de amigos de Autran na Leiteria Celeste).
Nesse conjunto, há livros, como “Os sinos da agonia”, ambientados em cenários rurais e escravocratas. Ou títulos como “Um artista aprendiz”, que tratam do cenário moderno e urbano de Belo Horizonte, com os encontros boêmios dos aspirantes a intelectuais (incluindo a boemia bem comportada do grupo de amigos de Autran na Leiteria Celeste).
Certo, um leitor interessado poderia encontrar alguma das várias entrevistas em que Autran afirmava que as leituras sociológicas de seus livros não eram as que mais o empolgavam, preferindo as interpretações míticas ou a análise da organização formal das narrativas. Mas, como ele mesmo dizia, essa era uma estratégia por meio da qual ele jogava com o leitor, velando e desvelando os caminhos de sua obra. Ele é um autor de muitas faces e, por isso mesmo, uma nunca apaga a outra.
Em carta a Raimundo Carrero, ele revela de modo taxativo essa obsessão por Minas: “Vivo para entender Minas Gerais, a sua loucura. O dia em que entendê-la, paro de escrever, quer dizer – nunca”. É por isso que ele repete em várias cartas, entrevistas e artigos de jornais que toda sua obra é “um grande painel de Minas”.
Olhar para o arquivo de Autran Dourado, portanto, é enxergar em sua obra e em suas personas públicas um vasto arquivo de Minas Gerais. É um arquivo que se atualiza no presente e nos ajuda a pensar a identidade cultural sem cair no simplismo de certos discursos nacionalistas encampados pela política atual.
Tendo atuado como secretário de Imprensa da Presidência do governo Juscelino Kubitschek, o autor tinha uma visão crítica dos processos políticos mineiros que, ao fim, eram assuntos da política nacional. Seus livros “Gaiola aberta” e “A serviço del-rei” são narrativas construídas a partir das memórias do período em que atuou junto à Presidência. Quanto ao último, o narrador João Fonseca Nogueira apresenta o perfil de um presidente aparentemente simplório, mas que, exatamente por isso, é uma figura perigosa e sedenta de poder.
ALEGORIA
Mas, em correspondências com amigos, Autran chama a atenção: “'A serviço del-rei' não é um romance sobre Juscelino, é uma grande alegoria sobre a política brasileira.” É por esse teor político que, em 1974, a Editora Expressão e Cultura precisou juntar uma nota à primeira edição de “Os sinos da agonia”, dizendo que a história se passava no século 18, como forma de driblar a censura. “A editora tinha medo, justificado, de que a minha história pudesse ser tomada como apólogo ou metáfora (e é isso mesmo! Basta saber ler) sobre o absolutismo e o autoritarismo”, explicava o autor em carta a Gilberto Mansur.
O romance “Lucas Procópio” é emblemático quando trata desse tema. Dividido em dois blocos, a primeira parte, intitulada “Pessoa”, narra a peregrinação de Lucas Procópio Honório Cota por Minas Gerais, uma figura ingênua e quixotesca. Porém, ao final dessa primeira parte, ele é morto por seu companheiro de viagem, Pedro Chaves.
Assim, no segundo bloco, intitulado “Persona”, o assassino se passa por Lucas Procópio, tomando posse de suas propriedades e se tornando uma figura autoritária. Em tempos de um Brasil atual, a obra de Autran sinaliza o risco de que máscaras sociais consideradas inofensivas na sua defesa de idealismos simplistas e risíveis possam se converter em personagens autoritárias, violentas e perigosas.
Esse autor sem estátuas ou bustos que o homenageiem aborda justamente esse tema no início do livro “Um cavalheiro de antigamente”. Nele, logo após a morte de Lucas Procópio, é feita uma máscara mortuária do violento homem, sem que ninguém saiba quem encomendou o serviço. Nesse momento, o personagem Vitor Macedônio especula com seu amigo João Capistrano Honório Cota, filho de Lucas Procópio: “Com certeza é pra mandar fazer um busto dele”, disse Vitor. “Seu pai foi um grande homem, chefe do Partido Republicano Mineiro”. Não é preciso ressaltar o acento irônico dessa passagem, que parece questionar quem é lembrado e por quais motivos.
RUÍNAS
Mas é também dos processos de esquecimento que tratam as narrativas do escritor. O romance “Ópera dos mortos” narra a história de Rosalina Honório Cota, neta de Lucas Procópio e última representante da decadente família patriarcal mineira. Ao longo do livro, a descrição das ruínas do sobrado onde vivia a família Honório Cota ou o espanto causado pelas voçorocas que engoliam a cidade mítica de Duas Pontes são metáforas poderosas desse processo de erosão do tempo que pode levar ao esquecimento mesmo de figuras ou de famílias poderosas.
E Rosalina, mulher solitária e amargurada, personifica os rostos invisibilizados. Situada no espaço entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, ela permanece todo o livro trancafiada no sobrado da família, observando o mundo de sua janela, sem que a cidade possa ver sua face. Assim como Eurídice, Rosalina é o rosto que está sempre lá, mas nunca pode ser visto.
A obra de Autran Dourado trata de temas diversos: a política, a violência, a loucura, a morte, a solidão, o desejo. Mas trata também do processo de esquecimento a que tudo está sujeito, inclusive o próprio escritor. Haverá em algum momento uma estátua sua? Seria um gesto de reconhecimento ao autor, responsável por uma escrita densa sobre Minas Gerais. Porém, isso depende de fatores complexos, inclusive políticos. O que sabemos é que hoje são seus livros que presentificam sua efígie. Brincando com as palavras de Gustave Flaubert, Autran gostava de falar: Rosalina c’est moi. Rosalina é ele: um rosto que pode ser pressentido, mas não visto.
O ano de 2020 foi o momento em que se celebraram os 300 anos de Minas Gerais. E foi também o ano em que a pandemia de COVID-19 se instalou no Brasil e que, por isso, muitos de nós tivemos nossos sofrimentos pessoais invisibilizados, além de sermos cerceados do contato com a dor do outro. Um ano em que todos fomos Rosalina: observávamos o mundo de nossas janelas, sem poder dar a ver nossos rostos. Talvez neste momento as obras de Autran Dourado nos ajudem a refletir: quais serão as Minas esquecidas nesses 300 anos?.
*Jonatas Guimarães é professor de literatura e letras no Instituto Federal do Triângulo Mineiro e estuda a obra de Autran Dourado em sua pesquisa de doutorado na Universidade Federal de Minas Gerais
LIVROS
SOMBRA E EXÍLIO
. 1950
TEMPO DE AMAR
. 1952
A BARCA DOS HOMENS
. 1961
UMA VIDA EM SEGREDO
. 1964
ÓPERA DOS MORTOS
. 1967
O RISCO DO BORDADO
. 1970
SOLIDÃO SOLITUDE
. 1972
UMA POÉTICA DE ROMANCE
. 1973
NOVELÁRIO DE DONGA NOVAIS
. 1976
ARMAS E CORAÇÕES
. 1978
NOVELAS DE APRENDIZADO
. 1980
AS IMAGINAÇÕES PECAMINOSAS
. 1981
O MEU MESTRE IMAGINÁRIO
. 1982
LUCAS PROCÓPIO
. 1985
VIOLETAS E CARACÓIS
. 1987
A SERVIÇO DEL-REI
. 1984
OS SINOS DA AGONIA
. 1988
UM ARTISTA APRENDIZ
. 1989
MONTE DA ALEGRIA
. 1990
UM CAVALHEIRO DE ANTIGAMENTE
. 1992
ÓPERA DOS FANTOCHES
. 1995
VIDA, PAIXÃO E MORTE DO HERÓI
. 1995
CONFISSÕES DE NARCISO
. 1997
GAIOLA ABERTA: TEMPOS DE JK E SCHMIDT
. 2000
BREVE MANUAL DE ROMANCE E ESTILO
. 2003
O SENHOR DAS HORAS
. 2006