A sala mede apenas 65 metros quadrados, mas a dimensão do material que abriga é infinita: estão ali, cuidadosamente alojados, cerca de 6 mil itens do acervo do cantor Renato Russo – número surpreendente, pois se acreditava que era metade disso. São manuscritos, instrumentos musicais, roupas, pôsteres, móveis e quadros, material que ajuda a reconstruir a intimidade e o modo feérico do líder da banda Legião Urbana, que completaria 61 anos em 27 de março. Ele morreu jovem, com apenas 36 anos, em 2006, vítima de complicações decorrentes da Aids.
“É um material fascinante, rico, que traduz muito da mente efervescente de Renato”, comenta a produtora Bianca De Felippes, da Gávea Filmes, que prepara documentário e minissérie a partir do acervo do cantor e compositor.
O vasto material está guardado na Clé Reserva Contemporânea, empresa localizada em Barueri (SP) e especializada na armazenagem de obras de arte. Ao percorrer a sala, Bianca se surpreendeu, embora seja íntima da trajetória do cantor e compositor – produziu dois filmes, “Faroeste caboclo” (2013) e “Eduardo e Mônica” (sem data de estreia por causa da pandemia), além de “Renato Russo – O musical”, lançado há 15 anos, com previsão de volta a São Paulo em julho.
Na visita à Clé, Bianca observou atentamente as anotações de alguns dos 29 diários que Renato escreveu entre 1975 e 1996 – o manuseio era feito por Renata Tsuchiya, historiadora e museóloga responsável pela catalogação do acervo. “Cerca de 90% do material já foi examinado e classificado”, orgulha-se ela.
Os diários revelam o estado de humor de Renato no momento da escrita, mas principalmente a linha de raciocínio e sua evolução criativa. “Quando escrevia uma letra de música, se fosse acrescentar algo, ele não rabiscava ou fazia anotações laterais. Preferia escrever tudo de novo, agora com o acréscimo”, observa Renata.
É possível notar que a letra de uma de suas mais famosas canções, “Eduardo e Mônica”, originalmente era mais extensa e incluía passagens como uma viagem à Índia, excluídas do texto final.
Cadernos com espirais
Naqueles diários, escritos em cadernos universitários com espirais, Renato exibe sua afiada conexão com o rock estrangeiro. Leitor voraz, usava a literatura como fonte de inspiração (Rimbaud, Auden, Bukowski), além de se apoiar na espiritualidade e na astrologia, com citações de mapa astral e holística.
Está lá a paixão dele por cinema: colecionava cartazes de filmes que esbanjam sensualidade, como “Atame!”, do espanhol Pedro Almodóvar, e “Betty Blue”, do francês Jean-Jacques Beineix. Há uma bela foto do italiano Pier Paolo Pasolini filmando na África.
Giuliano Manfredini, filho de Renato, deu carta branca para Bianca De Felippes pesquisar o material necessário para seu documentário, ainda sem título e em fase inicial de criação. “Algumas coisas já estão definidas, como a ausência de entrevistas, pois o próprio Renato vai conduzir o filme, revelando seu processo criativo, seus humores e amores, tudo a partir do material do acervo”, conta ela.
A minissérie de quatro episódios vai se fixar em detalhes do acervo, como o rico conteúdo das fitas cassete. “Quero mostrar aspectos pouco conhecidos do ídolo”, promete Bianca De Felippes.
Tesouro em caixas de sapato
Entre as joias do acervo de Renato Russo está a coleção de mais de 200 fitas cassete, nas quais gravou ideias para projetos futuros, mas principalmente registrou acordes musicais de seu processo de criação. “E pensar que esse material estava dentro de caixas de sapato...”, comenta a produtora Bianca De Felippes.
O acervo ficou anos guardado no apartamento onde Renato morou, em Ipanema, no Rio de Janeiro, mesmo depois de sua morte. Herdeiro do valioso material, Giuliano Manfredini, filho dele, percebeu a necessidade de recuperar, catalogar e, principalmente, tornar públicas aquelas preciosidades.
Em 2014, Manfredini entrou em contato com o Museu da Imagem e do Som de São Paulo (MIS) com a proposta de uma ampla exposição sobre Renato Russo. Uma equipe do Centro de Memória e Informação do MIS foi ao apartamento do artista.
Capitaneados pela documentalista Fabiana da Silva Ribeiro, os pesquisadores ficaram maravilhados com a quantidade de detalhes e documentos. As fitas cassete precisavam ser recuperadas do bolor que ameaçava sua audição, enquanto os diários, com inúmeras páginas soltas e dispersas, necessitavam ter a ordem restabelecida, muitas vezes a partir de pequenas pistas entre uma folha e outra.
Cerca de 1 mil peças foram selecionadas para a exposição, a maior montada no MIS, que ficou em cartaz de setembro de 2017 a janeiro de 2018, exibindo um sexto do acervo. Concluída a catalogação total, haverá mostras itinerantes em pelo menos cinco capitais a partir de 2022.
“Queremos montar um site rico de conteúdo, a exemplo daquele do Grateful Dead, que é espetacular”, observa Adriano Maia, da VMB Jurídica, que assessora Giuliano Manfredini.