Maria Clara Machado – nome maior do teatro infantil no Brasil – descobriu seu talento quando recebeu uma negativa. Foi trabalhando como voluntária no Patronato da Gávea, instituição que atendia os operários que trabalhavam nas imediações do Jardim Botânico, que ela ouviu ter pouco pendor para a enfermagem. Era saliente demais, disseram. Cabia-lhe melhor a função de “teatreira” e lhe encomendaram “qualquer coisa para distrair as crianças”. Foi assim que nasceram O Tablado, escola que formou gerações de grandes intérpretes, e a autora que viria a transformar o panorama do teatro para crianças.
Filha do escritor mineiro Aníbal Machado, Maria Clara (1921-2001) completaria 100 anos em 3 de abril. Era a segunda filha de cinco irmãs – todas Marias. Nasceu em Belo Horizonte, mas se mudou muito cedo para o Rio de Janeiro, onde cresceu rodeada por artistas e intelectuais. Gente como Vinicius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, Guignard e Rubem Braga, que batiam ponto em almoços e reuniões na residência da família, na Rua Visconde de Pirajá, em Ipanema.
Outro aspecto fundamental em sua formação foi a ligação com o movimento bandeirante, o que a levaria a percorrer o Brasil ainda menina e a aproximaria definitivamente do teatro.
FRANÇA Em 1949, uma bolsa do governo francês a levou a Paris, onde estudou com Charles Dullin, o mestre da improvisação, e Jean-Louis Barrault, mímico e grande intérprete da Comédie-Française. De volta ao Brasil, em 1951 – há exatos 70 anos –, criou ao lado de amigos o grupo amador O Tablado, lugar em que se experimentou primeiro como atriz e diretora.
O conhecimento de como funcionava, por dentro, a dinâmica das encenações e dos intérpretes fez toda a diferença na hora em que a artista se pôs a escrever. Seus textos trazem a grande qualidade que uma obra dramática pode ter: partem não propriamente de palavras, mas de fatos cênicos. Assim, cada mínimo detalhe do que estará em cena já reluz no papel. Mesmo quem apenas lê suas peças sai com um vislumbre do grande carrossel que é o teatro de Maria Clara.
Outra questão fundamental dessa dramaturgia é o entendimento do público infantil. Escreveu cinco peças adultas, mas ela mesma dizia sentir “falta de qualquer coisa” nessa relação. Com as crianças, tudo se resolvia de outra forma, mais fluida e intuitiva.
“Maria Clara não diz, não descreve teoricamente como são as crianças; faz uma coisa mais difícil: mostra-as em ação diante de nossos olhos, como uma realidade que é poética por ser tão depurada e verdadeira”, escreveu o crítico Décio de Almeida Prado quando assistiu a “Pluft, o fantasminha”.
Entre as suas cerca de 30 peças infantis, “Pluft”, de 1955, é certamente o maior sucesso. “Parece uma peça fácil, mas não é”, considerava a dramaturga. “Tudo é muito rápido, tem commedia dell’arte misturada com momentos poéticos. Foi difícil de fazer. Tivemos ensaios horríveis. Mas no dia da estreia, assistindo à peça, até me esqueci de que era minha e comecei a chorar pensando: que bonita que é.”
Para a crítica Bárbara Heliodora, “Pluft, o fantasminha” e “Auto da compadecida”, de Ariano Suassuna, eram os dois únicos clássicos da dramaturgia nacional montados e conhecidos em todos os cantos do Brasil.
Além de merecer montagens no país inteiro até hoje, a história da amizade da menina Maribel com um pequeno fantasma ganhou o mundo, com versões na Europa, nos Estados Unidos e em toda a América do Sul.
Maria Clara se divertia com a fama do personagem, que virou livro, revistinha e até nome de bandido. “Abri o jornal um dia e lá estava a notícia da prisão do procurado ladrão Pluft, o Fantasminha”, contou ela.
A obra da dramaturga mineira, porém, reúne outros títulos de equivalente inspiração, como “Cavalinho azul” (1960). Com estrutura simples – e por isso mais facilmente encenadas –, também conquistaram as plateias “A bruxinha que era boa” (1958) e “O rapto das cebolinhas” (1954), entre tantas outras. Este teatro foi tecido com dois elementos fundamentais: humor e poesia. De um lirismo que invariavelmente escapava da literatice por sua graça, por seu traço cômico.
TABLADO É impossível desvincular a literatura dramática de Maria Clara Machado de seu percurso no Tablado. Ela nunca desejou profissionalizar o grupo. Nem mesmo no fim dos anos 1970, com a regulamentação da profissão do ator no Brasil, quis que a companhia deixasse o teatro amador. Ao contrário, acentuou cada vez mais a função formadora do espaço, abraçando as novas gerações. Louise Cardoso, Andrea Beltrão, Leonardo Brício, Mateus Solano, Malu Mader, Fernanda Torres e Enrique Diaz são alguns dos muitos nomes que passaram pelo espaço.
O Tablado continua ativo. Funciona no Rio de Janeiro, sob o comando de Cacá Mourthé, sobrinha de Maria Clara Machado, e formou cerca de 5 mil atores.
Dali não se saía apenas ator ou atriz, mas com uma experiência profunda da improvisação e o entendimento do aspecto eminentemente artesanal do teatro. “Nós somos como sementes, aquela coisa que nasce e depois dá frutos”, dizia Maria Clara. “O Tablado tem dado muitos frutos. E são esses frutos que salvam o Brasil do caos.”
PEÇAS INFANTIS
» O boi e o burro no caminho
de Belém (1953)
» O rapto das cebolinhas (1953)
» A bruxinha que era boa (1954)
» Pluft, o fantasminha (1955)
» O Chapeuzinho Vermelho (1956)
» O embarque de Noé (1957)
» O cavalinho azul (1959)
» A volta do Camaleão Alface (1959)
» Maroquinhas Fru-Fru (1961)
» Camaleão na lua (1961)
» A Gata Borralheira (1962)
» A menina e o vento (1962)
» O diamante do Grão-Mogol (1966)
» Maria Minhoca (1967)
» Aprendiz de feiticeiro (1968)
» Tribobó City (1971)
» O patinho feio (1974)
» Os cigarras e os formigas (1974)
» Camaleão e as batatas mágicas (1976)
» Quem matou o leão (1977)
» João e Maria (1979)
» O dragão verde (1983)
» O gato de botas (1986)
» Passo a passo no Paço Imperial (1992, parceria com Cacá Mourthé)
» A coruja Sofia (1993)
» Tudo por um fio (1994,
parceria com Cacá Mourthé)
» A Bela Adormecida (1996)
» Jonas e a baleia (2000,
parceria com Cacá Mourthé)
» Alfaiate do rei (2004,
primeira montagem post mortem)
PEÇAS PARA ADULTOS
» Referência 345 (1963)
» Miss Brasil (1964)
» As interferências (1965)
» Os embrulhos (1969)
» Um tango argentino (1972)