Jornal Estado de Minas

HUMOR

Edson Aran inventa causos divertidos de expoentes da literatura brasileira



O simples ato de sorrir não tem sido praticado facilmente, principalmente por quem é brasileiro. Em momentos de tensão como o que estamos passando devido à pandemia, é possível que você já tenha sentido vontade de fugir um pouco da realidade, evitar o noticiário, buscar algo que traga alívio ou distração. Seja maratonando uma série, falando com a família e amigos pelo telefone, se aventurando na cozinha, ouvindo o cantor favorito e até fazendo aqueles exercícios físicos na sala.




 
O livro “Histórias jamais contadas da literatura brasileira”, do escritor, jornalista, cartunista e roteirista Edson Aran, pode ser opção para quem está à procura de algo leve para enfrentar o estresse. Mineiro de Cássia, que mora em São Paulo há 30 anos, ele diz que se propôs a desmistificar  “os astros das letras pátrias”.
 
 
 
Por meio de anedotas e crônicas, Aran cria histórias com Pero Vaz de Caminha, José de Anchieta, Gregório de Matos, Gonçalves Dias, Castro Alves, Machado de Assis, Ruy Barbosa, José de Alencar, Lima Barreto, Oswaldo Cruz, Monteiro Lobato, Euclides da Cunha, Ariano Suassuna, Graciliano Ramos e Carlos Drummond de Andrade.
 
Com linguagem simples, os textos curtos podem ser lidos numa tarde de quarentena, entre uma atividade doméstica e outra, ou mesmo no “recreio” do home office.
 
Aran comandou as revistas masculinas Vip, Sexy e Playboy, participou da reformulação do programa “Zorra” (Globo) e colaborou com o sitcom “Vai que cola” (Multishow). É ele quem assina as ilustrações que dão fluidez à leitura e ajudam a enriquecer os causos.




 
(foto: Bula/reprodução)
 
 
“Ao ler estas páginas, você vai poder comprovar por que a literatura é a mais importante das artes. Afinal, se a música se gaba de ser a única que pode nos atacar pelas costas, só a escrita tem o poder de comentar/criticar qualquer outra expressão artística”, afirma o humorista Cláudio Manoel, fundador do Casseta e Planeta na orelha do livro.
 
“Histórias jamais contadas da literatura brasileira” tem duas partes. A primeira, “Do quinhentismo ao naturalismo”, traz “Tomás Antônio Gonzaga, o inconfidente mascarado”, “Raul Pompeia e o ponto final”, “Machado de Assis, José de Alencar e a guerra de narrativas” e “Lima Barreto e os homens que sabiam javanês”. A segunda, “Do modernismo ao terraplanismo”, reúne “Oswald de Andrade e os ninjas assassinos”, “Manuel Bandeira vai embora pra Pasárgada”, “Plínio Salgado e a anta verde-amarela” e “Ferreira Gullar e o xampu de babosa”.
 
No livro de Aran, Machado de Assis enfrenta o racismo na Academia Brasileira de Letras (foto: Reprodução)
 
 
Edson Aran brinca com os “astros das letras pátrias”, mas reforça a importância da literatura e daqueles que contribuíram para a construção da cultura brasileira. Sem perder o tom crítico, humaniza e homenageia os principais escritores do país, além de ironizar e fazer trocadilhos com best-sellers e com o terraplanismo, teoria tão em voga atualmente.




 
Afinal de contas, esse é um livro de humor sobre a literatura ou um livro de literatura com humor? Certo é que Aran consegue escrachar com elegância e elogiar com deboche. Quem ler verá. 
 
"Mesmo os escritores 
chatos são importantes"
 
O livro foi produzido durante a quarentena. Como isso interferiu no seu trabalho? 
Olha, na verdade, a quarentena só interferiu no sentido de que tive muito mais tempo livre. O mundo parou, então aproveitei para escrever todos os dias. Uma coisa que continuo fazendo, aliás. Tanto que já estou terminando outro livro. É um romance.

Entre os autores citados no livro, você tem algum preferido?
Tenho vários autores preferidos, mas acho que eles são os favoritos de todo mundo: Guimarães Rosa, Machado de Assis, Nelson Rodrigues, Dalton Trevisan, Manuel Bandeira... Tem também aqueles que acho insuportavelmente chatos, como Raul Pompeia, José de Alencar, Álvares de Azevedo. E alguns escritores de quem gosto muito não estão no livro, porque são todos satiristas, como eu, e não faz sentido satirizá-los: Millôr Fernandes, Ivan Lessa, Luis Fernando Veríssimo, Jô Soares. De maneira geral, mesmo os escritores chatos são importantes na formação literária de um escritor. É preciso ler todos eles até para descobrir quais precisam ser evitados.

Nos textos, você faz paródias com o estilo de escrita dos autores. Como foi esse processo de desmistificação? Isso pode incentivar as pessoas a lê-los?
Pois é, o livro acabou virando, à maneira dele, um guia da literatura brasileira, embora esse não tenha sido o meu objetivo. É claro que ficarei muito feliz se algum texto meu levar o leitor a buscar um autor que ainda não conheça. Sempre gostei de fazer paródias literárias, até porque humor é referência. É um tipo de arte em que o leitor tem de ser uma espécie de coautor, senão a graça se perde.




 
Atualmente, é fácil ou difícil fazer humor no Brasil? O humor pode ajudar as pessoas em dias complicados como estes que estamos vivendo?
Olha, não acredito que o humor deva ter função utilitária. No meio de uma pandemia e com um governo sociopata como o que temos em Brasília, o humor pode ser uma distração, mas isso também acontece com a música ou a série de TV, por exemplo. Humor é um gênero literário. Quando ele começa a buscar um sentido, uma causa, um propósito, ele perde a graça e deixa de ser humor.

Millôr Fernandes é uma de suas referências. Aliás, você criou as ilustrações de “Histórias jamais contadas da literatura brasileira”. Qual é o papel delas?
Sempre quis fazer um livro ilustrado, mas faltava coragem. Agora, resolvi que todos os meus livros serão ilustrados. Primeiro porque livro precisa voltar a ser objeto colecionável, precisa ser bonito, atraente e bem-feito. Segundo porque o humor é a essência do que eu faço. Mesmo meus trabalhos jornalísticos, como “O livro das conspirações”, que saiu há três anos, ou minhas reportagens têm sempre um lado divertido, seja no tema ou na abordagem. Então, acho que a ilustração cabe. Ainda não fiz uma reportagem que também seja ilustrada por mim, mas só porque nenhum editor topou... Ainda! 
 
 
TRECHO

Empertigado em seu fraque engomado, Machado de Assis abre a primeira reunião da Academia Brasileira de Letras.
“Investindo-me no cargo de presidente, quisestes começar a Academia pela consagração da idade...”
No fundo da plateia, alguém grita:
“Cala a boca, ô crioulo!”.
Machado fica puto nas pantufas.




“Quem foi que falou? Hein? 
Foi você, Joaquim Nabuco?”
“Ora, meu caro Machado, eu seria incapaz 
de tal impropério!”, responde o 
diplomata, historiador e jornalista.
“E você, Ruy Barbosa? Foi você?”
“Como eu poderia cometer tal desfaçatez, árbitro das letras, filósofo do romance, joalheiro do verso e mágico do conto?”
O Bruxo do Cosme Velho bufa, resignado, e retoma o discurso de posse: 
“A Academia nasce com a alma nova e naturalmente ambiciosa...”
Mas lá do fundo vem de novo a voz provocadora: “Preto não pode subir no 
tijolo que já quer fazer discurso!”.
Dessa vez o escritor fica deveras irritado.
“Parou! Parou! Quem foi? Foi o espertinho do Bilac?! Hein, Olavo? Repete isso na minha frente que eu te dou um tapão na orelha que tu vai ouvir estrelas, vagabundo!”
Alguém cantarola lá no fundo: “Preta, preta, pretinha/ Eu ia lhe chamar/
Enquanto corria a barca...”




“Assim não dá, porra!”, esbraveja Machado.
“É você, Aranha? Tô ligado que tu é cheio de graça, ordinário! Tu tá me tirando, mano?! Não sabe onde mora o perigo, não, ô seu pleiba do caraio? O tambor vai 
girar procê, tá ligado?!”
Ruy Barbosa, o braço apoiado na cadeira, enquanto a mão sustenta o imenso cabeção, comenta com o Visconde de Taunay: 
“Ô crioulo difícil...”
Ao que Taunay, abrindo um largo sorriso desdentado, complementa: “Tchan!” 

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