"Para quê tanta música?” Havia cinco dias que Marina Lima estava em casa, em São Paulo, ao lado de seus parceiros de longa data Giovanni Bizzotto e Candé Salles – o primeiro, músico; o segundo, fotógrafo e diretor – remexendo em seu baú. O trabalho estava só começando e ela, já com raiva do volume que se apresentava, questionou a quantidade de canções.
Mas são 65 anos de vida, mais de 40 de carreira e uma discografia que, naquele momento, somava 20 álbuns. Enclausurada em virtude da pandemia de COVID-19, a cantora e compositora havia, finalmente, colocado em prática uma ideia que já vinha de muitos anos _ um songbook que reunisse toda a sua produção musical. Isso quer dizer não somente as canções que havia assinado, sozinha ou com parceiros, mas também as que havia gravado.
Com lançamento nesta sexta-feira (9/4), com download gratuito no site da cantora, o e-book “Marina Lima, música e letra” reúne em pouco mais de 500 páginas 175 canções de seus 21 discos. Seriam duas dezenas de álbuns, mas a pandemia a levou a uma produção intensa.
Quatro novas músicas estão no EP “Motim”, também disponível a partir desta sexta-feira (9/4) nas plataformas digitais. Sendo assim, o livro traz, em ordem cronológica, todas as músicas, de “Simples como fogo” (1979) a “Motim” (2021).
IMPACIÊNCIA
“Eu, por temperamento, não gosto de olhar para coisa antiga, pois acho que tenho muito o que fazer. Depois que faço e lanço, aquilo está resolvido. Isso vem da minha impaciência com coisas que já passaram e de ter que viver aquilo de novo”, conta Marina.
“Mas organizar, corrigir qualquer problema de partitura e acorde me fizeram entender melhor minha personalidade e musicalidade. E uma coisa legal é que gosto dos meus discos, tenho simpatia e perdoo as falhas”, comenta.
Um songbook também remete ao seu início na música. Aos 5 anos, a menina de Ipanema se mudou com a família para Washington (EUA), já que seu pai, o economista Ewaldo Correia Lima, tinha sido convidado para trabalhar no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). A melancolia da filha caçula no país estrangeiro levou os pais a lhe dar um violão de presente.
“Eu sentia falta do Brasil, do calor, do mar. Então, o violão foi importante para mim durante muito tempo. Estudei violão clássico, compus, comprei songbooks de Tom Jobim, dos Beatles. Depois de uns 15 anos, quando tudo foi explorado, saíram os timbres eletrônicos e fiquei doida com isso. Eu não era uma banda, era sozinha, e quando pude aprender teclado, programação, simular sons, minha musicalidade voou. Mas amo o violão, sempre volto a ele, que é como parte do meu corpo.”
No passado, Marina recebeu convites para fazer songbook, projetos que foi descartando. Quando decidiu assumir a função, convidou um amigo que conheceu pela internet, o professor Renato Gonçalves, para conceituar o trabalho. Nunca passou por sua cabeça incluir somente as canções que havia assinado.
DETALHISTA
“Considero que a minha obra são os meus discos. Tenho muita música que não é minha, mas eu tive voz através delas”, diz. Alguns de seus maiores sucessos são de terceiros, mas não há como desvincular as gravações de "Uma noite e meia" (Renato Rockett), “Mesmo que seja eu” (Roberto e Erasmo), "Pessoa" (Dalto) e "À francesa" (Claudio Zoli/Antônio Cicero) do registro de Marina.
“Sou virginiana, detalhista, então era importante que fosse tudo. No começo, foi um problema, pois as editoras não estão acostumadas com isso (songbook com músicas não autorais), então tudo virou uma burocracia sem tamanho. A sorte é que acabei tendo uma relação mais próxima com quase todo mundo que gravei, então os compositores liberaram na hora”, conta.
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Na impossibilidade de fazer shows e trancada em casa em razão da pandemia, Marina estava sem perspectiva. “Mas não sou dessas de se entregar. Aproveitei para estudar música tanto no computador quanto no violão. Aí vieram muitas ideias novas.”
Logo tinha um bom punhado de canções, que poderiam se tornar um álbum. “Mas vi que o importante era me expor e dizer agora o que as pessoas estão abertas a ouvir com tempo, vontade e identificação. Não queria encher os outros de música só porque sou compositora.”
Buscando uma unidade com o songbook, Marina gravou quatro da nova safra. “Pelos apogeus”, a primeira delas, é também a mais pessoal. Canção no formato básico de voz e violão, é um tanto autobiográfica.
“No começo era a praia/O mar com suas ondas e cor/Já na gringa outros ares/O frio, a raça, os sons e a dor/Finalmente o sol e a minha cidade/Anos de loucura e paixão/Derrapadas lá na meia-idade/E este inverno claro como verão”, ela canta, num resumo de sua própria vida.
“Quando você compõe e dá detalhes, faz de forma muito pessoal, a música vira algo que praticamente só interessa a você. Mas quando tento ser concisa ao falar de mim, qualquer um pode entender. ‘Pelos apogeus’ é isto, minha infância no mar, a pré-adolescência na gringa, a volta para o Brasil, as paixões e a meia-idade. Depois dos 60, falam que a gente entra no inverno da vida, mas o meu está sendo claro como o verão”, diz Marina.
Na sequência, o EP traz uma canção pop com letra romântica, “Motim” (Marina/Alvin L./Giovanni Bizzotto). As duas últimas têm uma pegada mais eletrônica, “Kilimanjaro” (Marina/Alvin L./Alex Fonseca) e “Nóis” (Marina), que fala mais diretamente com o tempo presente. Esta traz uma participação inusitada: Mano Brown fazendo vocalises.
“A onda de horror chegou por aqui/De todos os lados e sem prevenir/E nóis nesse trem/Com um vírus mais matador”, canta Marina, em letra que só foi escrita depois que ela recebeu, em casa, uma visita do líder dos Racionais MCs.
O encontro com Brown remonta a um passado distante. “Eu estava no prêmio da MTV (o VMB de 1998, quando os Racionais, em participação histórica, levaram os troféus de melhor vídeo de rap e escolha da audiência pelo clipe de “Diário de um detento”) e o Mano Brown e a mulher dele, Eliane (Dias), chegaram para mim dizendo que adoravam meu trabalho. Fiquei tão feliz e foi uma surpresa, já que não podia imaginar.”
O tempo passou e, volta e meia, Marina e Brown se encontraram. No início da pandemia, ela recebeu uma mensagem do rapper dando bom-dia, perguntando como estava. “Eu disse: ‘Brown, agora é a nossa hora, vamos compor’”. Ele foi à casa dela para compor uma música. Chegando lá, Marina mostrou o que há havia feito.
“Era uma música toda eletrônica, feita no computador, e o Mano Brown começou a fazer vocalises em cima. Fiquei louca, parecia a voz de um Milton Nascimento. Isso me influenciou tanto que fiz a letra e a melodia. Ao fazer o vocalise, o Mano Brown me deu toda a música”, diz Marina. Ainda não foi desta vez que os dois se tornaram parceiros, mas a intenção continua valendo.
“MOTIM”
>> EP de Marina Lima. Lançamento nesta sexta-feira (9/4), nas plataformas digitais
“MARINA LIMA – MÚSICA E LETRA”
>> Songbook digital, 574 páginas. Lançamento nesta sexta-feira (9/4). Download gratuito no site marinalima.com.br