Quando “Terra em trânsito” estreou em 2006, a peça escrita e dirigida por Gerald Thomas tecia críticas ao então presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, cuja política bélica endureceu após os ataques de 11 de setembro de 2001. Passados 15 anos, o texto foi atualizado para a estreia em formato virtual neste sábado (10/4), às 20h, via YouTube. Nessa nova versão, o dramaturgo e diretor expressa seu desgosto com Donald Trump, Jair Bolsonaro e o atual estado do Brasil e do mundo, o que inclui a pandemia do novo coronavírus.
“O momento é outro, mas ele não é tão outro, porque a humanidade fica girando em círculos, justamente o ponto da peça”, afirma Gerald Thomas. “Essa circularidade e repetição, às vezes até insuportável, está na política, nas questões sociais, nos regimes, nos costumes, na moda. Reescrevi algumas partes, mas a peça poderia ser encenada como foi em 2006. Muda o presidente, mas não muda a figura da presidência.”
ÓPERA
Em “Terra em trânsito”, uma solista (vivida pela atriz Fabiana Gugli) está prestes a entrar no palco para interpretar a ária Liebestod, da ópera “Tristão e Isolda”, de Richard Wagner. No camarim, ela começa a perder a noção da realidade enquanto dialoga consigo mesma diante do espelho – ou da câmera, na versão gravada. Tudo fica ainda mais alucinante com a entrada do cisne judeu (manipulado por Isabela Carvalho e com a voz do ator Marcos Azevedo), que é alimentado à força para virar foie gras.
O espetáculo conta com a participação de Ney Latorraca, que faz uma falsa chamada de vídeo com Fabiana Gugli. Os dois travam um diálogo metalinguístico sobre a peça e citam o jornalista Paulo Francis, cuja voz abria a versão anterior da montagem. A partir daí, começam as falas alucinadas que, de certa forma, têm relação com a realidade.
A primeira versão virtual da peça surgiu em julho de 2020, em apresentação única em projeto do Sesc. Naquele momento, ensaios eram feitos de forma remota, pois Gerald Thomas mora em Nova York, nos Estados Unidos, e o restante da equipe no Brasil. Por ter sido uma transmissão ao vivo, não houve muita preocupação técnica em relação à qualidade da imagem. Na versão gravada, Leon Barbero ficou responsável pela direção de filmagem e edição.
“Foi filmado com câmera de cinema, então a imagem é belíssima. Permitiu a coloração da maneira como imaginei”, conta o dramaturgo. “Fizemos a gravação pelo Zoom, então alguns movimentos de câmera não foram possíveis. A direção a distância impõe certos limites. Para algumas situações, é necessário estar no mesmo lugar.”
Gravada em dois dias de fevereiro, o cenário foi um quarto da casa de Fabiana Gugli. “É um filme, com nenhuma externa. Existem muitos filmes assim, como o 'Dogville'. É interno, dá a sensação de clausura”, afirma Gerald Thomas.
Apesar da referência ao filme de Lars Von Trier, lançado em 2003, o diretor não acredita que está fazendo cinema, tampouco teatro. “Não é nenhum dos dois”, garante.
“Tendo a rejeitar a ideia de que a gente está inventando uma nova coisa. O que estamos fazendo é colocar esparadrapo em cima de uma ferida, o que significa que não é uma medida permanente, mas provisória. Para cicatrizar mais rápido, depois vamos tirar”, diz.
De acordo com o diretor e dramaturgo, as experiências virtuais surgidas na pandemia não são “confortáveis” e acabarão abandonadas assim que as atividades presenciais forem retomadas. Até lá, ele tenta compreender as especificidades do produto feito para a internet. Uma das principais é a ampliação do público. “Quando você tem uma peça no espaço físico e o público de teatro vai te ver, se não conhece sua obra, ele pelo menos tem uma boa noção do que vai ver. Quando a coisa é pela internet, você tem que abrir um pouco o confinamento da sua mente e ser mais acessível”, analisa.
Outra característica que deve ser levada em conta é a volatilidade da atenção do espectador. “As pessoas estão em casa, param para buscar algo na geladeira para comer, mexem no celular, tem a interferência do barulho ambiente. Você tem de prender o público, há uma preocupação maior com isso.”
Também é necessário cuidado com o conteúdo apresentado. Apesar da classificação indicativa de 14 anos para “Terra em trânsito”, a transmissão é gratuita. Por conta disso, em vez de ser viciada em cocaína, a solista consome uma série de remédios, representados por jujubas.
“Tomar pílula mata do mesmo jeito que cheirar pó ou beber álcool. Mas as plataformas têm essas coisas. Algumas coisas podem e outras não. Existe esse subjetivismo, essa arbitrariedade. Hoje, já é liberado fumar maconha quase nos Estados Unidos inteiro. Antes, a Lei Seca proibia o consumo de álcool. Tudo vai e volta. A Terra está em trânsito o tempo todo, se repetindo. Acho uma 'caretagem' não poder fazer certas coisas”, diz.
Super bowl
Para ele, isso não é algo novo. “O mundo é limitado desde que a Janet Jackson mostrou metade de um bico de peito em 2004, no Super Bowl, e isso chocou muita gente. Existe uma hipocrisia que rola e é absolutamente ridícula.”
Com 66 anos e já vacinado contra a COVID-19, Gerald Thomas tem planos para outros projetos de teatro on-line. “Os teatros não vão abrir tão cedo e não quero parar de trabalhar”, afirma.
Ele pretende revisitar peças de Samuel Beckett, também com Fabiana Gugli. A parceria artística da dupla, que foi casada por sete anos, já tem duas décadas. “Beckett é o que mais caberia nesse formato sem grande deturpação do conteúdo. Retomar esse mundo negativo, perplexo, deprimido, pessimista, não só cabe ao tempo de hoje, como também serve ao formato de uma câmera que pode se aproximar de uma boca para desabafar, por exemplo.”
Como ele brinca, recorrer ao dramaturgo irlandês é dialogar com o jogo criado em “Terra em trânsito”. “Estreei em Nova York há 40 anos com Beckett.”, observa.
"O momento é outro, mas ele não é tão outro, porque a humanidade fica girando em círculos, justamente o ponto da peça (%u2026) Essa circularidade e repetição, às vezes até insuportável, está na política, nas questões sociais, nos regimes, nos costumes, na moda"
Gerald Thomas, dramaturgo e diretor
“TERRA EM TRÂNSITO”
Estreia neste sábado (10/4), às 20h, por meio do YouTube, com acesso exclusivo pelo link bit.ly/terraemtransito. Gratuito. Classificação: 14 anos. A peça estará em cartaz nos dias 11, 17, 18, 24 e 25 de abril, sempre às 20h. Entre 1º e 31 de maio, ela ficará disponível no YouTube.