A Cia. Carne Agonizante, de São Paulo, lança nesta terça-feira (13/4) a adaptação audiovisual do seu espetáculo de dança “Colônia penal”, que relaciona a obra de Franz Kafka (1883-1924) com a ditadura militar brasileira. A temporada virtual vai até 28 de abril, de forma gratuita, com oito exibições. Em quatro delas haverá bate-papo com os artistas na plataforma Zoom, após a transmissão.
A companhia de dança – especializada em temáticas políticas, provocativas e de resistência – estreou “Colônia penal” em 2013. Desde então, promove o espetáculo frequentemente, convidando o espectador para uma reflexão sobre a história da ditadura brasileira. A obra é inspirada no livro de Franz Kafka que retrata o método de tortura de uma fictícia colônia francesa, sendo crítica aberta aos regimes autoritários.
“O Kafka foi meio uma droga na minha vida. Experimentei e, desde então, esse autor vem me atormentando sempre”, descreve Sandro Borelli, de 61 anos, coreógrafo da Cia. Carne Agonizante e diretor do espetáculo. O grupo explora a obra do escritor tcheco desde 2002, quando lançou a adaptação de "A metamorfose" (1915) nos palcos. Ao mergulhar em “Na colônia penal” (1919), Borelli imediatamente relacionou a trama ao regime militar brasileiro devido à perseguição, tortura e assassinato de opositores do Estado.
“Unir esse ambiente inusitado do Kafka com a tortura na ditadura militar brasileira foi um orgasmo. É minha oportunidade de combater através da arte o assassinato em massa de brasileiros que ocorreu nos 21 anos de regime militar”, ressalta o diretor. “Preciso estar movido pela indignação para criar. Então, é um espetáculo que foi vomitado. Esse processo criativo foi uma vontade de lembrar nossa história, porque as feridas (da ditadura) continuam abertas, sangrando, e não se discute isso, principalmente nesse tipo de governo vigente no país”, completa.
Na adaptação, Sandro Borelli empregou o palco como local de tortura. No fundo, existe uma mesa com cinco personagens anônimos jantando, bebendo e jogando baralho. Cada um deles simboliza um representante do regime ditatorial: Estado, Exército, capital, elite e grande imprensa.
A bailarina Patrícia Pina encena a torturada, que se apresenta para o grupo e sofre as mais terríveis barbáries, fazendo duetos com os opressores. O espetáculo não tem texto ou sequência de passos próprios da dança contemporânea. Por meio de uma estrutura de gestos, ações e movimentos, eles constroem uma dramaturgia corporal teatralizada para gerar um jogo de tensão no espectador.
“Colônia penal” propõe o encontro entre o insólito e o absurdo. Em sua maneira de resistir, a personagem faz contraponto aos torturadores ao não esboçar reações às agressões, sem gritos ou gemidos. “Esse ambiente kafkiano está presente o tempo todo. Inclusive, em alguns momentos, parece que essa torturada está ali de propósito para rebater esse sistema opressor”, afirma Sandro.
Segundo ele, a bailarina precisa de preparo físico e psicológico para suportar a humilhação. Nas temporadas presenciais, eram necessários dois dançarinos para revezar o papel devido ao esforço empregado no palco. Entre os artistas presentes em “Colônia penal”, Patrícia Pina é a única com o rosto à mostra. Os personagens que representam os torturadores vestem ternos e máscaras para manter o anonimato.
O diretor acredita que a adaptação para o formato audiovisual, por meio do trabalho de uma equipe especializada em cinema, potencializou ainda mais o espetáculo. “A energia cênica continua presente no trabalho, só que em uma outra linguagem", esclarece Sandro, que aprovou a experiência em vídeo. A montagem não sofreu nenhuma alteração cênica na transposição para o novo formato imposto pela pandemia de COVID-19.
“Colônia penal” é um atentado contra a dignidade humana, com o anti-herói kafkiano lançado, torturado e executado nos porões da ditadura militar brasileira. Para a Cia. Carne Agonizante, lançar o projeto durante o governo de Jair Bolsonaro é uma forma de resistência.
“É um momento de enfrentamento. O artista, a arte brasileira, não deve ter medo desse governo, muito pelo contrário. Então, o momento atual é muito pertinente (para lançar o vídeo). É poesia de guerra mesmo, contra esse Estado que está aí”, defende Sandro Borelli, que se descreve com a "ira de Aquiles”, em “Ilíada”, ao promover o espetáculo no contexto atual.
Segundo ele, após um século do lançamento do livro “Na colônia penal”, a obra de Kafka continua atual, sendo um momento oportuno para retomar a reflexão proposta. “Esse espetáculo ('Colônia penal') não vai estar datado nunca, infelizmente. A gente convive com essa discussão o tempo todo”, concluiu.
* Estagiário sob supervisão da subeditora Tetê Monteiro