
A Cia. Carne Agonizante, de São Paulo, lança nesta terça-feira (13/4) a adaptação audiovisual do seu espetáculo de dança “Colônia penal”, que relaciona a obra de Franz Kafka (1883-1924) com a ditadura militar brasileira. A temporada virtual vai até 28 de abril, de forma gratuita, com oito exibições. Em quatro delas haverá bate-papo com os artistas na plataforma Zoom, após a transmissão.
A companhia de dança – especializada em temáticas políticas, provocativas e de resistência – estreou “Colônia penal” em 2013. Desde então, promove o espetáculo frequentemente, convidando o espectador para uma reflexão sobre a história da ditadura brasileira. A obra é inspirada no livro de Franz Kafka que retrata o método de tortura de uma fictícia colônia francesa, sendo crítica aberta aos regimes autoritários.
“Unir esse ambiente inusitado do Kafka com a tortura na ditadura militar brasileira foi um orgasmo. É minha oportunidade de combater através da arte o assassinato em massa de brasileiros que ocorreu nos 21 anos de regime militar”, ressalta o diretor. “Preciso estar movido pela indignação para criar. Então, é um espetáculo que foi vomitado. Esse processo criativo foi uma vontade de lembrar nossa história, porque as feridas (da ditadura) continuam abertas, sangrando, e não se discute isso, principalmente nesse tipo de governo vigente no país”, completa.
Na adaptação, Sandro Borelli empregou o palco como local de tortura. No fundo, existe uma mesa com cinco personagens anônimos jantando, bebendo e jogando baralho. Cada um deles simboliza um representante do regime ditatorial: Estado, Exército, capital, elite e grande imprensa.
A bailarina Patrícia Pina encena a torturada, que se apresenta para o grupo e sofre as mais terríveis barbáries, fazendo duetos com os opressores. O espetáculo não tem texto ou sequência de passos próprios da dança contemporânea. Por meio de uma estrutura de gestos, ações e movimentos, eles constroem uma dramaturgia corporal teatralizada para gerar um jogo de tensão no espectador.
“Colônia penal” propõe o encontro entre o insólito e o absurdo. Em sua maneira de resistir, a personagem faz contraponto aos torturadores ao não esboçar reações às agressões, sem gritos ou gemidos. “Esse ambiente kafkiano está presente o tempo todo. Inclusive, em alguns momentos, parece que essa torturada está ali de propósito para rebater esse sistema opressor”, afirma Sandro.
Segundo ele, a bailarina precisa de preparo físico e psicológico para suportar a humilhação. Nas temporadas presenciais, eram necessários dois dançarinos para revezar o papel devido ao esforço empregado no palco. Entre os artistas presentes em “Colônia penal”, Patrícia Pina é a única com o rosto à mostra. Os personagens que representam os torturadores vestem ternos e máscaras para manter o anonimato.
O diretor acredita que a adaptação para o formato audiovisual, por meio do trabalho de uma equipe especializada em cinema, potencializou ainda mais o espetáculo. “A energia cênica continua presente no trabalho, só que em uma outra linguagem", esclarece Sandro, que aprovou a experiência em vídeo. A montagem não sofreu nenhuma alteração cênica na transposição para o novo formato imposto pela pandemia de COVID-19.
“Colônia penal” é um atentado contra a dignidade humana, com o anti-herói kafkiano lançado, torturado e executado nos porões da ditadura militar brasileira. Para a Cia. Carne Agonizante, lançar o projeto durante o governo de Jair Bolsonaro é uma forma de resistência.
“É um momento de enfrentamento. O artista, a arte brasileira, não deve ter medo desse governo, muito pelo contrário. Então, o momento atual é muito pertinente (para lançar o vídeo). É poesia de guerra mesmo, contra esse Estado que está aí”, defende Sandro Borelli, que se descreve com a "ira de Aquiles”, em “Ilíada”, ao promover o espetáculo no contexto atual.
Segundo ele, após um século do lançamento do livro “Na colônia penal”, a obra de Kafka continua atual, sendo um momento oportuno para retomar a reflexão proposta. “Esse espetáculo ('Colônia penal') não vai estar datado nunca, infelizmente. A gente convive com essa discussão o tempo todo”, concluiu.
* Estagiário sob supervisão da subeditora Tetê Monteiro