Em dezembro de 1993, Roberto Carlos lançou seu álbum de número 33. As rádios da época logo destacaram “Coisa bonita” (Roberto e Erasmo), em que o Rei cantava para as gordinhas. Mas foi outra canção que fez história, mantendo-se até hoje em seu repertório: “Nossa Senhora” (também com Erasmo Carlos). De relevante entre as nove faixas também estava a regravação de “Se você pensa” (mais uma da lavra com o parceiro eterno), regravação do álbum “O inimitável” (1968).
A crítica não quis saber. “Trabalho muito duro de aturar”, escreveu Antônio Carlos Miguel; “pulável” e “monótono”, descreveu Carlos Albuquerque; “tudo soa repetitivo”, resumiu Mauro Ferreira. O que chama a atenção não é o aspecto negativo da análise, algo que acompanha Roberto desde o início da carreira. Mas sim que os três textos que, exceto um detalhe ou outro, diziam a mesma coisa, dividiram a mesma página, uma capa do caderno de cultura do jornal “O Globo”.
Em 1966, lançou “Roberto Carlos”, primeiro dos discos que, a partir de então, passaram a ter somente seu nome no título. No repertório estava “Querem acabar comigo”, composição que assina sozinho (naquele momento havia tido cisma com Erasmo). É esse também o título de um livro que trata, sob um viés inédito, a obra do Rei.
“Querem acabar comigo – Da Jovem Guarda ao trono, a trajetória de Roberto Carlos na visão da crítica musical” (Máquina de Livros), de Tito Guedes, acompanha seis décadas da produção do maior ídolo da música brasileira por meio do que foi escrito sobre seus discos na imprensa. Desdobramento do trabalho de conclusão da graduação de estudos de mídia, pela Universidade Federal Fluminense (UFF), a obra separa por décadas a análise sobre a música de Roberto.
Guedes, que concentrou sua pesquisa na imprensa carioca e paulista, trabalhou a partir de uma centena de textos. “A crítica musical sempre abraçou Caetano, Chico, Tom Jobim, ainda que tenha criticado um ou outro álbum. Para artistas considerados cafonas, os críticos nem se davam ao luxo. O Roberto ficava no meio disso”, comenta.
Nunca pegaram leve com o Rei, mesmo que atualmente, sob a perspectiva temporal, muito da sua obra da fase inicial tenha sido reavaliada. Um dos primeiros textos de destaque na imprensa foi de Sérgio Augusto, referência no jornalismo cultural. Em 1965, quando atuava no “Jornal do Brasil”, o escritor e jornalista chamou Roberto, então ídolo da Jovem Guarda, de “debiloide”.
“O surgimento do Roberto veio na época da própria consolidação da crítica musical no Brasil”, destaca Guedes. Boa parte dos textos analisados são de jornalistas que ajudaram a construir a memória da música brasileira, como Tárik de Souza, Zuza Homem de Mello e Sérgio Cabral.
Profusos até os anos 1990, com a crise da imprensa escrita, que viu a perda do espaço destinado à crítica cultural, os textos analíticos sobre a obra de Roberto também diminuíram. Tanto que Guedes encontrou somente um texto mais aprofundado sobre o single “Sereia” (2017), um dos lançamentos mais recentes do Rei.
O grosso do material vem de jornais, mas o autor destaca três textos ensaísticos. Em 1979, na coletânea “Anos 70”, José Miguel Wisnik escreveu que a crítica não estava preparada para falar de Roberto, que batia sempre na tecla do “cantor comercial”. Em defesa da obra, ele comentou que até então ninguém havia tentado entender o porquê de o Rei se manter no topo por tanto tempo. “Pedi à minha mulher que escrevesse sobre isso”, continuou Wisnik.
VOZES MÚLTIPLAS
Nove anos mais tarde, no ensaio “Democratização no Brasil – 1979-1981”, Silviano Santiago destacou que o texto de Wisnik foi a primeira “leitura simpática e favorável” ao cantor, mas que o autor havia caído em uma “armadilha de gênero”, ao se colocar no lugar de sua mulher para falar da obra de Roberto. Mesmo que a questão não tenha virado uma celeuma, em 2005, em uma reedição de “Anos 70”, Wisnik escreveu uma réplica a Santiago, dizendo considerar “surpreendentemente inocente” que o ensaísta mineiro tenha achado que ele havia realmente pedido ajuda à mulher, e que seu texto havia sido escrito em “vozes múltiplas”.
“Ainda que os textos do Wisnik e do Santiago tenham um diálogo com a academia, até hoje é muito raro um estudo, uma dissertação sobre Roberto”, finaliza Guedes que tem a intenção de iniciar um mestrado no mesmo tema.
QUEREM ACABAR COMIGO
De Tito Guedes
Máquina de Livros
144 páginas
R$ 42 (livro) e R$ 28,90 (e-book)
Novo livro em pré-venda
Roberto Carlos, que chega aos 80 na próxima segunda (19/4), é mais do que sabido, levou para a Justiça o pesquisador Paulo César de Araújo e conseguiu recolher, em 2007, a biografia “Roberto Carlos em detalhes”. Em 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) liberou as biografias não autorizadas e o imbróglio acabou gerando outro livro de Araújo, “O réu e o rei” (2014). Araújo volta a escrever sobre Roberto em dois livros, o primeiro, “Roberto Carlos outra vez”, com lançamento para este semestre. Já o jornalista Jotabê Medeiros, que já biografou Belchior e Raul Seixas, lança na semana que vem “Roberto Carlos: Por isso essa voz tamanha”. O volume, em pré-venda, estará disponível para o público a partir do dia do aniversário do Rei.
O QUE ESCREVERAM SOBRE ROBERTO CARLOS
. Década de 1960
“Um debiloide de pouco mais de vinte anos que se diz ‘homem mau’ e ficou conhecido graças a um barulhento calhambeque” (Sérgio Augusto, “Jornal do Brasil”, 18 de março de 1965)
. Década de 1970
“O repertório selecionado por Roberto Carlos para o disco que acaba de lançar indica que as vendas do LP do ano passado não foram lá essas coisas. É o que se pode deduzir pela evidente recusa do cantor, abandonando as incursões pela música latino-americana e pelas canções tipo classe A, como ‘Mucuripe’, de Fagner e Belchior” (Sérgio Cabral, “O Globo”, 6 de dezembro de 1976)
. Década de 1980
“O cantor está virando um prisioneiro do zelador/compositor, e, embora o segundo assegure com seu domínio o pique de vendas e de execução do primeiro, a Música Popular Brasileira está perdendo, a cada dia, momentos irrecuperáveis de um artista fenomenal” (Zuza Homem de Mello, “O Estado de São Paulo”, 10 de dezembro de 1981)
. Década de 1990
“Está mais do que na hora de Roberto Carlos dar a volta por cima. Talento ele sempre teve de sobra, como compositor ou cantor – num estilo que o coloca como uma espécie de discípulo pop de João Gilberto. Coisa que nesta coleção ‘The master’ é comprovada pelos discos que ele lançou entre 1963 e 1971” (Mauro Ferreira, “O Globo”, 9 de agosto de 1994)
. Década de 2000
“Assim como a João Gilberto e Milton Nascimento, a maior acusação que se faz a Roberto Carlos é que ele é repetitivo, redundante. Seus discos mais recentes – das últimas duas décadas, pelo menos – têm primado pela execução de arranjos rotineiros, letras melosas, ideologia comodista e mise-en-scène messiânica” (Jotabê Medeiros, “O Estado de São Paulo”, 5 de dezembro de 2003)
. Década de 2010
“Embora a produção autoral do artista venha se tornando cada vez mais espaçada, o Rei ainda exerce poder junto ao público feminino brasileiro, como comprovam os shows sempre lotados do cantor e essa gravação de ‘Sua estupidez’. Para esse público, o EP ‘Roberto Carlos’ conserva inalterada a realeza do artista nos últimos 50 anos. E é para esse público súdito que Roberto Carlos canta e grava discos com coerência estratégica ao longo de todos esses anos” (Mauro Ferreira, G1, 13 de abril de 2017)