Jornal Estado de Minas

LITERATURA

Amigos contam verdades e mentiras sobre o 'personagem' Gabo


Em 2001, a escritora colombiana Silvana Paternostro foi convidada por uma revista americana para escrever uma história oral de Gabriel García Márquez (1927-2014). Não seria algo grande, mas, mesmo assim, ela teve uma boa ideia: em vez de ouvir o que celebridades tinham a dizer sobre Gabo, preferiu conversar com aqueles que o conheceram antes de se tornar um premiado escritor – amigos, familiares, jornalistas e, principalmente, personagens de “Cem anos de solidão”.





Silvana gravou 24 fitas de conversas, na Colômbia e no México, até saber que o artigo não mais sairia. Guardou o material até que, em 2010, decidiu transformá-lo na base de um livro. Reouviu as conversas, deu boas risadas, mas percebeu que precisava fazer mais entrevistas para preencher algumas lacunas. Voltou a campo e, com farto material, construiu “Solidão e companhia”, delicioso conjunto de vozes que, como num quebra-cabeça, busca construir o perfil de Gabo. O livro sai agora pelo selo Crítica, da Editora Planeta do Brasil.

Como bem define a autora, a obra é como uma festa em que os convidados falam sobre o anfitrião ausente, mentindo, exagerando, elogiando, fofocando. Todos trazendo histórias que, verídicas ou não, são originais. “Solidão e companhia” (o título se refere à produtora de filmes que García Márquez desejava montar) se divide em duas partes.

INFÂNCIA

Na primeira, 'A.C.' (antes de “Cem anos de solidão”), falam seus irmãos, assim como os amigos antes de ele se tornar o ícone latino-americano admirado internacionalmente. “Essa primeira parte reúne as vozes daqueles momentos irreverentes e esperançosos nos quais um menino provinciano decidiu se tornar escritor”, conta a autora, lembrando que, para todos, ele era Gabito, jovem obstinado que sabia que o catatau que sempre carregava debaixo do braço se transformaria em algo muito importante.




Na segunda parte, 'D.C.' (depois de “Cem anos de solidão”), surge um García Márquez premiado, o homem célebre. Silvana abre exceções e libera a voz de  escritores conhecidos, como o argentino Tomás Eloy Martínez e o americano William Styron, somente porque trouxeram contribuições valiosas. Martínez, por exemplo, disse que, para ser amigo de Gabo, nunca se devia escrever sobre ele. E se lembrou da história de quando Márquez vivia em Paris, jovem e pobre.


“Ele viu Ernest Hemingway em um parque. Em vez de se aproximar e puxar conversa, decidiu gritar o nome dele do outro lado da pequena praça, levantar a mão e sinalizar com um gesto o quanto o respeitava. Entendi o medo que sentia, pois é muito fácil ser tentado pela proximidade.”

Apesar da grande profusão de personagens, quase todos desconhecidos para o leitor brasileiro, o que vale são as histórias – é preciso lembrar que Gabriel García Márquez (que não foi ouvido para o livro) sempre se inspirou em histórias e personagens com quem conviveu.





Silvana Paternostro compara seu livro a uma festa em que convidados fofocam sobre Gabo (foto: Youtube/reprodução)

AVÔ

Como seu avô materno, coronel Nicolás Márquez, com quem Gabito viveu os primeiros oito anos de vida. Eram apaixonados um pelo outro. O avô comemorava o aniversário do neto todos os meses, a fim de lhe fazer festa e lhe dar presentes. Margot, irmã de Gabito, também vivia ali, em Aracataca, assim como a tia Mama, mulher solteira e de personalidade forte.

“Era ela quem guardava as chaves da igreja e as do cemitério. Um dia, vieram pedir as chaves do cemitério porque tinham de enterrar um morto. Tia Mama foi procurar as chaves, mas começou a fazer outra coisa e se esqueceu delas. Cerca de duas horas depois, ela se lembrou, e o morto teve de esperar até que ela aparecesse com as benditas chaves. Ninguém se atreveu a lhe dizer nada”, conta Margot.

A vida de Gabito mudou ao ganhar o Nobel de Literatura, em 1982. A notícia chegou quando ainda era madrugada na Cidade do México, onde então morava. Amigos iam chegando e encontraram Mercedes, a mulher do escritor, com todos os telefones fora do gancho. O assédio que se tornaria corriqueiro já começara. 





Gabo posou com o olho roxo para o amigo Rodrigo Moya (foto: Rodrigo Moya/Reprodução)

O soco “direitista” de Vargas Llosa

“Nocaute” é um dos capítulos mais folclóricos (e saborosos) de “Solidão e companhia”. Trata-se do soco que o peruano Mario Vargas Llosa desferiu contra seu então grande amigo Gabriel García Márquez, em 1976, durante um evento público. Esse incidente, que tantas fofocas rendeu, reforça o método escolhido pela autora: unir várias vozes sobre um mesmo assunto.

Até aquele momento, nenhum dos dois havia recebido o Prêmio Nobel de Literatura (Gabo ganharia em 1982, e Llosa em 2010), mas eram mundialmente reconhecidos como grandes autores – bastam “Cem anos de solidão” (1967) e “Conversa na catedral” (1969) como cartões de visita.

AMIGOS

A admiração era mútua, eles se consideravam amigos fraternos. “Mario, porém, era um grande mulherengo, pois era um homem bonito”, conta, no livro, o fotógrafo colombiano Guillermo Angulo. “As mulheres morriam por Mario. Em uma viagem que fez de navio de Barcelona para El Callao, conheceu uma mulher linda. Eles se apaixonaram. Abandonou a esposa e foi embora com ela. E o casamento acabou.”

Mais detalhes são apresentados, agora por Plinio Apuleyo Mendoza, romancista e diplomata colombiano. “Patricia (mulher de Llosa) está no navio com Mario quando ele se apaixona”, narra ele. “Quando chegam ao Chile, Patricia tem de voltar a Barcelona e arrumar a casa. Gabo e (sua mulher) Mercedes ficaram com ela o tempo todo. Eles eram muito próximos.”





Mario Vargas Llosa e Patricia, pivô do nocaute, em foto de 1967 (foto: AFP/Arquivo Vargas Llosa - 1967)

CARIBENHO

Mendoza apimenta ainda mais a história rocambolesca ao lembrar que quando Patricia necessita voltar a Santiago, Gabo a leva até o aeroporto e, como estão atrasados, o colombiano diz, sem pensar: “Se o avião decolar sem você, faremos uma festa”. “Gabo é caribenho, e foi nesse espírito que ele disse isso, mas ela entendeu mal”, emenda Mendoza.

A continuação da história é novamente narrada por Angulo, amigo próximo a García Márquez desde o período de penúria que o escritor passou durante sua juventude, em Paris. “A esposa de Mario voltou para arrumar a casa e, claro, começou a encontrar os amigos”, relata o fotógrafo. “Então, Patricia e Mario reataram e a esposa disse a ele: 'Não pense que não sou atraente. Amigos seus como o Gabo estavam atrás de mim'.”

Aquilo certamente fez o sangue latino entrar em ebulição, pois a despeito da carreira como intelectual e do poder de persuasão das palavras, Llosa esperou o momento para resolver no muque. A chance veio em um evento público na Cidade do México, em 1976.





Segundo Angulo, tudo ocorreu no teatro onde seria apresentada a pré-estreia do filme “Sobreviventes dos Andes”, inspirado na trágica história real sobre a queda do avião, na Cordilheira dos Andes, que transportava uma equipe uruguaia de rúgbi. Sem esperança de salvamento, os sobreviventes foram obrigados a tomar a terrível decisão de se alimentar da carne dos mortos.

Antes do início da sessão, Gabo avistou o amigo e foi em sua direção, com os braços abertos. “Mario”, disse, sorrindo. “Vargas Llosa fechou o punho e disse: 'Isso é pelo que você tentou com minha esposa' e o derrubou no chão”, narra Angulo.

BIFE

“Ele ficou sangrando quando caiu, porque a lente de seus óculos quebrou e a contusão foi bem feia”, emenda o fotógrafo Rodrigo Moya, amigo em quem Gabo depositava confiança, ainda que não fossem íntimos. E acrescentou um detalhe insólito: “Os primeiros socorros ajudaram a aliviar, e não sei se (o diplomata) China Mendoza ou (a escritora mexicana) Elena Poniatowska foi comprar um bife cru para colocar no olho dele. É tudo verdade. Treinei um pouco de boxe desde criança e coloca-se bife em olho roxo. Não sei como, mas tira o hematoma”.
 
Moya não presenciou o incidente. Por isso, levou um tremendo susto quando, dois dias depois, ouviu batidas na porta: eram Gabo e a esposa, Mercedes. “Naquela época, eu não o chamava de Gabo, nem de Gabito – para mim, era Gabriel García Márquez”, conta Moya, de 86 anos, em entrevista por vídeo no México, onde vive. Com isso, o fotógrafo delimitava a amizade de proporções reservadas que os unia. Mesmo assim, o escritor colombiano o procurou em dois momentos importantes de sua carreira.





A segunda vez era naquela manhã. “Eles vieram para as fotografias. Ele me disse: 'Quero que você tire algumas fotos do meu olho roxo'. Confiavam em mim.” Gabo usava uma jaqueta e Mercedes estava de preto, com um grande par de óculos escuros. “Perguntei: 'O que aconteceu?'. Ele fez uma piada, como 'eu estava lutando boxe e perdi'. Quem explicou foi Mercedes.”

Moya ri ao se lembrar do comentário da mulher de Gabo: “Mario é um idiota ciumento”. Continua rindo ao revelar que o soco foi de direita, justamente no momento em que Llosa surpreendeu os amigos ao manifestar pensamentos direitistas.

Fato é que Gabo queria mostrar que estava bem, apesar do olho roxo – ideia de Mercedes. “Gabriel não gostava de ser fotografado e, naquele dia, estava também deprimido.” Foram várias chapas amuado até que Moya disse algo que fez Gabo sorrir. “Disparei e consegui duas imagens. Divulgo uma delas, justamente uma das minhas fotos mais vendidas.”





A outra vez em que eles se encontraram foi para fazer a foto da a primeira edição de “Cem anos de solidão”. “Fizemos belas fotos, mas a editora preferiu que o livro só tivesse ilustrações. Uma pena”, lamenta Moya.

(foto: Editora Planeta/Crítica/Reprodução)

“SOLIDÃO E COMPANHIA”
• De Silvana Paternostro
• Editora Planeta/Crítica
• 288 páginas
• R$ 49

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