Duas atrizes brasileiras estreiam nesta sexta-feira (16/4) monólogos encenados em suas próprias casas e transmitidos virtualmente. Kate Hansen protagoniza “Clarice e os corações selvagens”; Flávia Bertinelli interpreta “Colóquio com personagens I”.
As montagens foram feitas com apoio da Lei Aldir Blanc, destinada a viabilizar projetos culturais no contexto da paralisação do setor em virtude da pandemia do novo coronavírus.
Com texto de Júlio Kadetti (autor da novela “O sétimo guardião”) e direção de Marcelo Drummond (Teatro Oficina), “Clarice e os corações selvagens” é inspirado na crônica “O mineirinho”, de Clarice Lispector, a respeito de um assassinato cometido pela polícia.
O paralelo traçado pela peça é com a execução do músico Evaldo Santos Rosa, de 51 anos, fuzilado com 80 tiros por integrantes do Exército, no Rio de Janeiro, em abril de 2019. Na história criada por Kadetti, a morte de um jovem negro pela polícia faz com que Clarice repense sua trajetória de vida e seu papel na sociedade.
Kate Hansen afirma que o monólogo propõe uma reflexão útil e importante para o tempo presente. Ela conta que se identifica com a protagonista, que começa a questionar o preconceito vigente na sociedade brasileira e a violência policial contra a população negra, a partir de um episódio específico. “É a primeira vez que a personagem (Clarice) se liga que a sociedade também tem culpa (nesse assassinato)”, diz a atriz, de 68 anos.
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“É um momento de desabafo e catarse da personagem em meio à quarentena. Aquela morte mexeu com ela. Clarice percebeu que não está feliz consigo mesma. Esse exemplo horroroso faz com que ela se humanize”, aponta a atriz.
TRATAMENTO
A estreia do monólogo marca o retorno de Kate Hansen à atividade teatral, após a descoberta de um câncer de mama, em setembro de 2020. A atriz afirma que enfrentou o tratamento de peito aberto. Passou por cirurgia e superou sessões de quimioterapia e radioterapia (sem perder um fio de cabelo).
Hoje, faz consultas para o controle da doença. Segundo ela, o regresso ao teatro em meio à inviabilidade de apresentações presenciais e longe dos palcos é um grande desafio, mas traz também a satisfação em voltar a fazer o que ama.
“É minha maneira de me expressar na vida. Meu palanque é o palco”, diz. Desde 1998 sem encenar monólogos, ela teve que aprender a lidar com os novos artifícios digitais para viabilizar a montagem virtual de “Clarice e os corações selvagens”.
O diretor Marcelo Drummond contou com a ajuda do filho da atriz, o diretor de cinema Lucas Margutti, para unir a linguagem do teatro com a do audiovisual. “Essa nova linguagem não é fácil. Tem muita gente lutando, porque isso não é cinema, não é teatro, não é televisão. O que é?”, questiona a atriz.
Desde a aprovação do projeto pela Lei Aldir Blanc, a equipe teve somente dois meses para ensaiar o texto (por meio de videochamada) e gravar o espetáculo. A atriz relata que a maior dificuldade foi lidar com a ferramenta tecnológica, mas se sentiu feliz e estimulada ao descobrir um novo modo de produzir.
“Eu sou muito positiva, a gente não tem que achar que só está sofrendo. Nós estamos aprendendo”, avalia. Pela primeira vez em sua carreira, o apartamento de Kate Hansen se tornou cenário de um espetáculo. Foi necessário mudar o aspecto da casa para trazer a cenografia do monólogo nas gravações. A atriz contou que encarava a câmera como se estivesse conversando com o público e não se sentiu intimidada com a ausência da plateia.
Para Kate, o ator de estrear o monólogo carrega uma mensagem em si mesmo. “Tento fazer o que fiz com o câncer, ao invés de passar um recado ruim, transmitir o amor. Não vou apontar o dedo na cara de ninguém, estou propondo uma outra saída. Não estou denunciando ninguém, nem querendo apontar um revólver para alguém, pelo contrário. Eu sugiro que não se use o revólver.”
"Clarice e os Corações Selvagens"
De: Júlio Kadetti. Direção: Marcelo Drummond. Com Kate Hansen. Transmissão via Sympla, desta sexta-feira (16/4) a quarta (21/4), sempre às 21h. Ingressos a R$ 10,00. Duração: 60 minutos.
ADAPTAÇÃO DE PIRANDELLO
“Colóquio com personagens I”, de Luigi Pirandello (1876-1936), trata da angústia do autor diante da entrada da Itália na Primeira Guerra Mundial, afetando sua produção artística. A adaptação do solo estrelado por Flávia Bertinelli faz referência à atual fase de descontrole da crise sanitária no Brasil, com seus reflexos no processo criativo, em um momento trágico no qual não é possível colocar a arte em primeiro plano.
Com direção de Cris Lozano, a montagem terá seis apresentações on-line, desta sexta-feira (16/4) até o próximo dia 25. Em “Colóquio com Personagens I”, ao ver seu filho indo à batalha, o autor acredita que é necessário mudar as prioridades e se afastar dos seus personagens, levantando o questionamento sobre o que é mais importante: a vida ou a criação. Como dramaturga, Flávia Bertinelli imediatamente se identificou com a trama no contexto da pandemia de COVID-19.
“Nós estamos em guerra e tem pessoas que não acordaram para isso ainda”, afirma. A atriz conta que encara essa realidade toda vez que abre a internet e aposta na força da dramaturgia de Pirandello para tocar as pessoas neste contexto trágico.
No texto, os personagens ficcionais do autor ganham voz própria e discutem com o criador sua angústia. “Eles falam: eu sei que você está preocupado com a guerra, mas nós estamos preocupados em viver a arte. Essa guerra é dos homens, não pertence à criação. Eu sou um personagem e não estou inserido nesse contexto. Eu não tô nem aí para a sua guerra”, descreve Flávia. “A grande metáfora é essa: a criação é independente do real”, observa.
“Colóquio com personagens I” é o primeiro monólogo da atriz na nova linguagem audiovisual. Segundo ela, o maior desafio foi lidar com a solidão durante a performance a distância. Por outro lado, ela acredita que o solo seja o formato mais propício para espetáculos on-line neste contexto de isolamento social.
AUTONOMIA
“As ferramentas dependem da sua autonomia e da direção, não envolvem outras pessoas. Nesse sentido, é um facilitador. Por outro lado, é solitário, mas também um desafio. Você se enxerga, se ouve e se reconhece enquanto atriz criadora. Foi um exercício difícil, mas muito potente em todos os sentidos, não só artístico, como humano inclusive”, ressalta.
O escritório em que Flávia guarda seus livros se tornou cenário da peça, numa referência ao ambiente de trabalho do autor. Para fugir dos ruídos da rua e da interferência dos filhos, ela optou por gravar o monólogo de madrugada e aprovou a experiência em home office.
“Isso tudo não seria possível se não tivesse uma direção muito dedicada, numa escuta extremamente sensível. E, sobretudo, as pessoas que moram comigo, que são meus filhos, meu companheiro, além do meu cachorro. Só foi possível pelo encontro humano da minha casa e da minha diretora”, comenta.
A atriz afirma que ainda está aprendendo a lidar com a nova linguagem digital, mas, assim como Kate Hansen, acredita que o formato não se compara com a arte teatral. “É uma outra linguagem. O teatro é a arte do encontro, isso é insubstituível. Do meu ponto de vista, não dá para tratar essa linguagem como teatro jamais. O teatro ainda é a arte do encontro e sempre será.”
Segundo ela, o monólogo é de grande importância ao destacar o valor da arte em momentos de crise, sendo essa a grande discussão de Pirandello nesse texto. “Lógico que a vida vem em primeiro lugar (em detrimento da criação), não há dúvida alguma. Sem vida, a gente não é nada e ninguém. Jamais quero competir com esse lugar”, afirma. “Só que, para as pessoas ficarem em casa, refugiadas ou aprisionadas, sem qualquer tipo de arte, como elas vão sobreviver? Espero que as pessoas curtam, se divirtam com essa troca. É isso que eu quero, alimentá-las, distraí-las, com algo potente, com arte.”
“Colóquio com Personagens I”
De: Luigi Pirandello. Direção: Cris Lozano. Com Flávia Bertinelli. Temporada: desta sexta (16/4) a domingo (18/4) e de 23/4 a 25/4, sempre às 20h. Duração: 30 minutos. Transmissão via canal no YouTube da atriz.
*Estagiário sob a supervisão da editora Silvana Arantes