Jornal Estado de Minas

CINEMA

'Não aceitei ser o maldito', diz o censurado cineasta Neville D'Almeida

Cinefantasy 2021 presta uma homenagem especial ao cineasta belo-horizontino Neville D’Almeida, que completa 80 anos no mês que vem. “É um grande diretor, que durante 32 anos teve a maior bilheteria da história do cinema brasileiro (“A dama do lotação”, entre 1978 e 2010). Neville é um cineasta que não se enquadra em apenas um gênero. Por isso resolvemos exibir suas obras mais obscuras, que passaram em poucos festivais”, diz o curador Eduardo Santana. 





Alguns de seus filmes estarão em cartaz em uma mostra retrospectiva, que inclui o curta “Cosmococa”(1973), dirigido com Hélio Oiticica; seu primeiro longa,“Jardim de guerra”, gravado em 1968, mas censurado durante anos pela ditadura militar; além dos mais cultuados “Rio Babilônia” (1982) e “Matou a família e foi ao cinema” (1991). 

Prestes a se tornar octogenário, o mineiro fica feliz com a homenagem e referenda a avaliação de que sua obra não se enquadra em um único estilo. 

“O que faço é sobrepor gêneros. Essa é a coisa mais importante do artista: tentar sobrepor gêneros,  não só como atitude, mas como conceito, como desenvolvimento de uma obra com profundidade. Vejo essa homenagem muito justa, por ser um festival que busca isso: inovação, invenção e criatividade na linguagem cinematográfica”, afirma Neville.  

Muito atacado pela censura do regime militar pela proposta socialmente disruptiva de seus títulos, o cineasta celebra que seus filmes tenham mais essa janela para serem vistos. “Meus filmes dialogam com o presente e com o futuro. É sempre importante o público ter acesso. Meu cinema foi censurado, escondido e proibido”, cita. “‘Jardim de guerra’ foi feito em 68 e nunca exibido comercialmente, isso é uma tragédia, não só pessoal, mas social, de um país como o nosso ter essa censura.”

O diretor se define como “diferente de tudo e de todos”. E diz: “Quando se chega na minha idade, o negócio não é vaidade, é verdade. Então as pessoas vão ter oportunidade de ver a minha obra, de tomar conhecimento. Sou o cineasta mais censurado na América Latina. Fiz meu primeiro filme em 68 e só fui ter um filme exibido 10 anos depois e consegui ter um dos filmes mais vistos da história . Então foi uma vida de resistência. O mineiro sabe resistir. Nada foi por acaso. Não aceitei ter meus filmes proibidos, não aceitei ser o maldito. Sou bem-aventurado”, diz o diretor, preocupado com os sinais de retrocesso que enxerga hoje na democracia brasileira.





“Estamos num retrocesso trágico, brutal. O país está destruindo todos os movimentos ligados à arte. Temos um presidente contra a música, contra a literatura, contra a liberdade, contra o meio ambiente, contra o convívio social, contra a educação, e a favor do que há de pior. Estamos economicamente falidos, culturalmente falidos e politicamente comprometidos com um presidente que diariamente faz ameaças à Suprema Corte. Fala que vai ‘ouvir a voz da rua’. A voz da rua não é a daquele grupo que dá para contar que fica na porta do palácio puxando o saco dele”, opina. 

Segundo o diretor, “mais que nunca, é hora de reagir, de fazer, de criar novas formas”.  Ele lembra que, nos anos 1960, vivia em Nova York, e uma de suas inspirações para retornar ao Brasil foi o Cinema Novo. 


“O meu caminho vai para o futuro, para o cinema moderno, de liberdade, de acabar com a miséria sexual do cinema, com essa coisa do cinema ser uma arte controlada por moralistas, por censura, por má interpretação religiosa. Nunca aceitei isso, faço outro cinema, faço ‘A dama do lotação’, faço ‘Mangue bangue', a liberdade é a ferramenta do artista e o cinema é diverso, permite várias linguagens, várias possibilidades", afirma. 

Apesar da pandemia, Neville diz estar em constante processo de criação. Ele lista pelo menos três projetos de novos filmes em que trabalha atualmente para tomarem forma no futuro. Um deles se chama “Minas Babilônia”, em parceria com o diretor Eder Santos e a roteirista Mônica Cerqueira. Sem poder dar mais detalhes, ele diz que a ideia é gravar em Belo Horizonte, quando possível.




audima