Jornal Estado de Minas

CRÍTICA

'Baixo esplendor' é narrativa tensa e impiedosa de Marçal Aquino


“O acaso é o jeito que Deus encontrou para escrever seus poemas”, diz um capítulo inteiro do novo romance de Marçal Aquino, “Baixo esplendor”. Mas que o leitor não se engane. A frase, com força de aforismo e de algum modo entrelaçada ao enredo do livro, é uma das poucas licenças poéticas na trama de outro modo tensa e intensa e de capítulos relativamente longos.



A verdade é que o texto de Marçal Aquino parte de uma premissa de brutal impiedade para com quaisquer distrações na leitura. Ele pega os leitores pelos cabelos da nuca e brada: é assim que se constrói uma narrativa eficiente, observe bem! Largue-a antes do fim, se for capaz. Eu te desafio.

Verdade que uma vez iniciado o turbilhão de acontecimentos, dificilmente o leitor consegue se desgrudar do texto. Aliás, especialidade da casa, por assim dizer, Marçal Aquino havia se exibido narrador eficaz em livros anteriores. Surpresa zero que continue assim, para felicidade dos leitores, que só podem lastimar, se é que podem, intervalos longos entre um romance e outro. Mas, vá lá, é parte da técnica do romancista gerar suspense e fazer das esperas um prazer dolorido.

Agente infiltrado numa quadrilha de ladrões especializados em roubo de carga num Brasil mergulhado em ditadura nos anos setenta do século passado, Miguel vive no fio da navalha que uma posição dessas exige, sempre com um olho esticado por cima do ombro. Embora tenha ganho a confiança do chefe, Ingo, e inclusive o coração da irmã dele, Nádia, mulher definida como “para grandes fomes”, Miguel sabe que a qualquer momento a casa pode cair.





Uma primeira consideração, aliás, merece ser feita em relação aos nomes. Logo no início do livro, o leitor é informado de que “Miguel” não é o nome verdadeiro do agente, mas em nenhum momento o verdadeiro aparece. E o curioso é que os demais personagens têm nomes que variam de um trivial, como Nádia, até os mais corriqueiros ou francamente peculiares – Lucas, Elvis, Jobair, Oberdã –, sem esquecer os diferenciados. O chefe da quadrilha chama-se Ingo e o delegado que é chefe de Miguel e de toda a operação chama-se Olsen. Hierarquias sociais transpostas para nomes próprios, eis uma hipótese.

A história tem início no momento em que Miguel é escrutinado para fazer parte do bando, inclusive com a casa em que mora submetida a vistoria rigorosa, até a ascensão rápida que faz dentro da quadrilha, por conta da simpatia que desperta no chefe. Que viva numa espécie de aparelho, ou seja, numa casa de fachada e temporária que não é a residência real, é apenas uma das leves menções ao ambiente sombrio em que o país de então vivia mergulhado, em meio às trevas ditatoriais.

Muito leve mesmo, considerando-se o peso que era a vida real então. A certa altura, aliás, Nádia pergunta a Miguel se ele está envolvido com política. O que – e tudo no livro pode ser lido em camadas, a depender do cuidado com que se aborda – gera resposta negativa. Não é política, no sentido estrito de ele não fazer parte de algum grupo de esquerda ou das milícias do Esquadrão da Morte que matavam sem julgamento. Mas nunca deixa de ser, qualquer que seja a posição que se escolha e a atitude que se tome – ou se deixe de adotar.





Mas tudo isso aparece como pauta subterrânea, o que a história quer e consegue é envolver o leitor na trama, que oscila entre uma operação policial de infiltração, o risco constante de desmascaramento e o amor explosivo e elétrico entre o policial e a irmã do chefe.


Desvios sem perder essência


Claro, além da trama central e mais importante, a narrativa também se detém, aqui e ali, nas subsidiárias, nas histórias que ajudam a formular um contexto e perceber como as pontas do acaso e da coincidência exercem efeito impressionante na vida das pessoas, o que justifica o capítulo a respeito da poesia divina, quando ele aparece.

Fica-se sabendo que o pai de Miguel foi policial e que, aposentado, termina por interferir num assalto à drogaria no bairro onde mora e mata os assaltantes, o que o converte em espécie de herói local. Mas um dos assaltantes mortos era irmão de certo dono de morro – cujo apelido não é menos interessante, Normal – e o encontro dele com Miguel, em situação avançada da trama, será importante para o desenvolvimento.





Toda história central tem outras tantas afluentes que ajudam a engrossar o caldo. Relatadas com maestria, ajudam a história a ir adiante ou recuar, a depender da situação de domínio do narrador – e o de Marçal Aquino é extremo. A vida não é lidar apenas com a narrativa central, mas também com as outras tantas distrações pelo caminho que também solicitam atenção.

O leitor será então apresentado a Lucas, especialista em fabricar bombas, e a tantos outros personagens de uma galeria em que o submundo da marginalidade e aquele da força policial que deveria deter o crime se entrecruzam, para se mostrar que não estão necessariamente de lados opostos. A única diferença entre polícia e bandido, a narrativa ensaia a certa altura, é que “em geral, um lado vestia uniforme”.

De vez em quando, a trama se permite mergulhar no submundo do pensamento marginal ao se referir a certas formas específicas de raciocínio ou postura. Assim, quando vai buscar o chefe do crime num Opala envenenado para levá-lo a um encontro, Miguel percebe o quanto o cheiro dos assentos novos do veículo agrada a Ingo.



“Era um dos quatro aromas favoritos daquele tipo de gente – os outros três eram o cheiro do dinheiro, de buceta e de pólvora, com a ordem de preferência variando conforme o indivíduo em exame.” A cada um de seus prazeres e depois, como não pode faltar, problemas inevitáveis. Logo Miguel e o chefe estão num restaurante engordurado de beira de estrada, “Ingo com sua azia de estimação, Miguel com uma carga de pressentimentos que lhe chegava a pesar nos ombros”.

Às vezes, um encontro secreto com o verdadeiro chefe para atualizar a situação serve para relembrar velhos casos e aproveitar as lições que se pode obter da experiência. O chefe lhe adverte para não se apaixonar pela moça; afinal, ao fim da operação, ele deve se desincompatibilizar com o passado, o que quase nunca é simples. Acontece que o coração tem outros ritmos, como se sabe.

Casais pegam fogo por razões inesperadas”, adverte a chefia. A narrativa finge certo pudor ao descrever o encontro inicial de Miguel e Nádia, mas é por motivos de ironia. “O que as bocas – as línguas – faziam não pode, de maneira nenhuma, em nome dos bons costumes, ser classificado como beijo.”





Outros integrantes da quadrilha, Moraes, Elvis, também conhecido como o Véio, também fazem ponta nessa trama, ao lado de informantes, como Sandro, e a irmã agradecida deste, Karina, uma estrela de TV em ascensão que foi livrada de uma chantagem de um fotógrafo do submundo e agora quer retribuir a Miguel, que a salvou. É como a vida, as pessoas precisam umas das outras, dependem de boa vontade e de agendas distintas e o grande regente, em vez de se preocupar com ordem e progresso, talvez esteja com mais vontade de escrever a poesia do acaso.

Correr riscos de ser desmascarado, ser seguido pelas ruas, ter tempo de ler romances policiais baratos, um pouco de tudo acontece na vida em formato de montanha-russa de Miguel. No momento de “submergir”, ou seja, largar o bando que está prestes a ser preso pela polícia, Miguel havia imaginado que iria deixar Nádia ao vento, sem lhe contar nada.

Mas opta por outra estratégia, a de conversar com ela, sem, evidentemente, esclarecer tudo. Mesmo assim, é atitude amadora, o que sempre se desculpa pelas palpitações erradas do coração, esse músculo involuntário e arredio. “Existia um pouco de tudo nas prateleiras do mercado sentimental”, o texto concede. A mágica que Miguel pretende operar, mas sabe ser praticamente impossível, é manter perto de si aquela mulher, uma vez concluídos os trabalhos.





Bem, é aqui que a resenha precisa suspender as entregas, que já avançam muito, e conter os cavalos. A última parte é justamente a que se inicia com o capítulo aforístico sobre a poesia do acaso de Deus, mas não se pode mais adiantar além disso, porque há limites para o que os corações dos leitores se predispõem a aceitar em termos de revelações. “Existem diversas maneiras de descrever um fato, mas apenas uma será fiel”, está dito a certa altura. “Em geral, a menos verossímil.”  Verdade que a arte também surpreende, nunca é demais enfatizar, quase tanto quanto a vida.

*Paulo Paniago é professor de jornalismo da Universidade de Brasília 

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