Jornal Estado de Minas

ARTES CÊNICAS

Matheus Nachtergaele vive protagonista em crise de Dostoiévski

O encontro da Rússia do final do século 19 com o Brasil do início do terceiro milênio é a base da experiência dramática que encerra, nesta segunda-feira (26/4), o projeto digital “Abismos de Dostoiévski”.



O evento on-line do Centro Cultural São Paulo celebra o bicentenário do escritor russo (1821-1881). A leitura do conto “O sonho de um homem ridículo” (1877) também será um encontro de afetos do ator Matheus Nachtergaele e da diretora Cibele Forjaz.


É o próprio ator quem conta a história. “(No final dos anos 1980) Comecei a fazer teatro com o Antunes Filho (1929-2019), participei dos ensaios de ‘Paraíso Zona Norte’ (1990) durante quase um ano, mas não estreei a peça. Fiquei um tempo decidindo se queria ser ator, até resolver fazer o vestibular para Arte Dramática na USP. Neste processo, a Cibele, recém-formada pela ECA (Escola de Comunicações e Artes, da mesma universidade) começou a ministrar uma oficina para montar ‘Woyzeck’ com jovens atores. Fiz o teste e entrei na montagem”, diz ele.

Pois ao lado de Matheus também estavam outros jovens de teatro, como o mineiro Antônio Araújo, responsável pela dramaturgia, e Guilherme Bonfanti, pela iluminação. “Na verdade, estavam ali, em 1990, todos os cabeças do Teatro da Vertigem”, comenta Matheus, referindo-se à gênese da companhia fundada em 1992 e cuja primeira obra foi “O paraíso perdido”.





ESTACIONAMENTO

Nesta montagem de “Woyzeck”, encenada em um estacionamento da Rua Augusta, em São Paulo, Matheus interpretou Andres. Muitos anos mais tarde, em 2003, ELE voltaria à obra-prima do alemão Georg Büchner (1813-1837) no papel-título e novamente sob a direção de Cibele Forjaz, que, ao longo dos anos, tornou-se uma estudiosa de Dostoiévski. Matheus, por seu lado, é um leitor apaixonado pelo russo. Até então, não tinha feito nada em teatro relacionado à sua obra.

TRADUÇÃO

Corta para os tempos atuais. Há coisa de dois, três anos, relembra Matheus, o diretor Marcos Alvisi lhe enviou a tradução que havia feito de “O sonho de um homem ridículo”. “Fiquei com o texto na cabeceira e alimentando a ideia de um dia fazê-lo no teatro, provavelmente com o Alvisi. Eis que a Cibele me liga algumas semanas atrás, falando do convite do CCSP de fazer uma experiência sobre Dostoiévski no YouTube.”

Não houve dúvidas, o texto seria aquele. Por consideração a Alvisi, que lhe havia apresentado “O sonho de um homem ridículo”, Matheus telefonou para o encenador comentando a respeito do projeto. “Ele me disse: ‘Vá, o importante é que se faça’.”. Cada qual de sua casa, Matheus e Cibele, além da realizadora Manoela Rabinovitch, começaram a trabalhar no projeto.

“O sonho de um homem ridículo” traz um narrador-protagonista que teve uma epifania após um sonho. Homem de São Petersburgo que não vê mais razão em viver, o personagem pensa em suicídio. Sua vida acaba sendo salva por causa do sonho. “Como sempre em Dostoiévski, o que importa não é o final da história, mas o que vai acontecendo durante a narrativa”, diz Matheus.





Ele não entrega todo o jogo, mas conta que a transmissão resulta de vários encontros gravados por meio de videoconferência. “Nosso material tem uma hora e meia, o que daria um longa para a internet. Mas o exercício será editado para 30 minutos. O resultado é bem o desmascaramento do processo criativo de uma peça, além de ser o laboratório de ator. E tem ainda uma terceira camada, de improvisações minhas sobre o tema, além de imagens de arquivo que serão anexadas”, conta o ator, que vai assistir ao resultado final junto com a plateia virtual.

DESISTÊNCIA

A releitura vai aproximar o texto clássico com o Brasil de hoje. “No conto de Dostoiévski, o homem que se diz ridículo desiste da vida e um sonho o leva a uma tribo de homens simples, puros, ligados à natureza. Nunca imaginamos que ele poderia dar um desdobramento no Brasil com os povos originários. Mas também nunca a identidade indígena esteve tão ameaçada quanto agora”, comenta Matheus. Tal ligação foi feita por Cibele, que é também pesquisadora da cultura indígena brasileira. 

Matheus espera que desta experiência nasça, no futuro, uma montagem de palco na qual ele volte a trabalhar com a colega de geração. Atualmente, o ator está em Tamandaré, litoral Sul de Pernambuco. Chegou a fazer imagens da região, que reúne praias desertas e o encontro do rio com o mar. Nesta noite, vai ser com o som das ondas ao fundo que ele participará da transmissão





O SONHO DE UM HOMEM RIDÍCULO

Experiência cênica a partir do conto de Dostoiévski com Matheus Nachtergaele, direção de Cibele Forjaz e vídeo de Manoela Rabinovitch. Transmissão nesta segunda (26/4), às 20h, no canal do YouTube do Centro Cultural São Paulo. Após a transmissão, haverá live com ator e diretora.

Ator gravou segunda temporada de 'Cine Holliúdy', com os protocolos sanitários, que 'tiram um pouco de alegria do processo', diz ele (foto: Marcos Rosa/Divulgação)

Novos projetos para "aliviar os corações”


Um “ciberanalfa” (de analfabeto). É o próprio Matheus Nachtergaele que se define desta forma. “Sou um homem analógico. A internet nunca foi objeto de interesse dos homens de teatro”, ele diz. A pandemia do novo coronavírus mudou esse cenário. “A internet veio salvar o teatro, ainda que eu não ache que ela vá substituí-lo. Mas é bonito que seja ela que nos deixe permanecer vivos enquanto a vacinação não chega”, diz.

Antes de “O sonho de um homem ridículo”, o ator teve duas experiências de teatro on-line. Fez, sozinho, em junho passado, pelo projeto Em Casa com o Sesc, a adaptação do monólogo “O processo de conscerto do desejo”, espetáculo que criou a partir dos poemas de sua mãe, Maria Cecília Nachtergaele. 





Já em setembro, também em formato on-line pelo Sesc, encenou “Antunes Filho: Sodoma & Gomorra”, de Luiz Päetow, a partir do único texto escrito pelo diretor de teatro morto em 2019. A experiência digital nasceu da peça, que faria parte do Festival de Teatro de Curitiba, cancelado no ano passado por causa da pandemia. 


CONTATO

“Sempre me interessei pela internet mais para divulgar meus trabalhos nas redes sociais. Com a pandemia, virou o meio de contato com a família, os amigos e, aos poucos, fui trabalhando com ela. Ainda mais porque há trabalhos meus na Globoplay, Netflix, muitos filmes disponíveis no streaming.”

Matheus se impressionou com a repercussão da comédia “Cabras da peste”, de Vitor Brandt, lançada pela Netflix em março passado e que figurou, por mais de uma semana, como o filme mais visto da plataforma no país. O longa estreou quando ele gravava, na Globo, a segunda temporada da série “Cine Holliúdy”. 





No último dia 22 de março, depois de quatro semanas de gravações, elas foram suspensas devido ao avanço da pandemia. “É claro que os protocolos (sanitários) tiram um pouco de alegria do processo. No caso de ‘Cine Holliúdy’, é grave, pois é uma comédia brincante. Fizemos um esforço grande para não nos abater. Estávamos mais apegados à chance de poder fazer.”

Depois de ensaios on-line, a equipe, da frente e de trás das câmeras, se reuniu para gravar. “Éramos testados de três em três dias, os maquiadores e iluminadores se aproximavam o mínimo possível do elenco. E o ator só tirava a máscara na hora de gravar. Mas, na hora que tirávamos, rompíamos a mordaça e íamos para o abraço. Foram quatro semanas intensas”, diz ele, que gravou muitas cenas ao lado de Heloísa Perissé e Gustavo Falcão. 

Para Matheus, atuar neste momento, seja em uma imersão de Dostoiévski ou num projeto de vocação popular como a série da Globo, é necessário. “Vamos criar material inédito para as pessoas saborearem em casa. Estrear um projeto na pandemia é aliviar os corações”, afirma.

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