Jornal Estado de Minas

SÉRIE

Super-heróis têm de lidar com conflito de gerações em 'O legado de Júpiter'



Logo na primeira cena, três crianças brincam de pega-pega no parque. Alcançada pelo adversário, a garotinha se enfurece e reage com força sobrenatural. O pai a repreende. A menina se defende, dizendo que o garoto “é o cara mau, e temos que pegar os caras maus”. Ele contesta, argumentando que a filha deveria se importar com as pessoas, acima de tudo. E completa: “Embora seja fácil machucar pessoas, ficar com raiva e até matá-las, os caras maus também são pessoas e o certo seria detê-los e prendê-los”.




 
O fato de a menina usar superpoderes para reagir ao garoto e o pai aparecer voando, de capa vermelha, já deixa claro que se trata de nova trama de super-heróis. Contudo, o diálogo inicial mostra também que a série “O legado de Júpiter” pretende inserir a fantasia no contexto social bastante urgente e real deste mundo em que as forças do Estado seguem matando civis em nome da segurança pública.
 
O paizão Sheldon Sampson (Josh Duhame) treina Brandon (Andrew Horton), mas não confia na vocação do filho para super-herói (foto: Netflix/divulgação)
 

LACUNA Lançada na sexta-feira (7/5), a produção da Netflix aproveita a lacuna de grandes estreias de super-heróis famosos para tentar emplacar novos personagens. A trama adapta a história em quadrinhos homônima criada por Mark Millar. Publicada em 2013, essa HQ oferece boa base para a abordagem proposta pelo seriado.
 
O escocês, de 51 anos, é um dos quadrinistas mais cultuados do mundo, embora criticado por alguns grupos. Dono de seu próprio selo, o Millarworld, Mark já teve outras criações transportadas para a tela. É o caso de Kick-Ass, que deu origem ao filme “Kick-Ass – Quebrando tudo”, de 2010, e Kingsman, que virou trilogia cinematográfica.




 
Adulta, Chloe (Elena Kampouris) rejeita superpoderes, gosta de beber, cheira cocaína e quer ser modelo (foto: Netflix/divulgação)
 
 
Com doses de sarcasmo e violência, as histórias de Millar trazem os heróicos protagonistas em versões mais humanizadas e longe do glamour, explorando o cotidiano corriqueiro deles. Isso ocorre em “O legado de Júpiter”, cujo centro das atenções é Utópico, identidade assumida por Sheldon Sampson, papel do ator Josh Duhamel.
 
Capaz de voar como o Superman, com quem se assemelha tanto no vestuário quanto na incrível força, ele lidera a União da Justiça. O esquadrão de super-heróis e super-heroínas tem a missão de proteger a Terra (mais especificamente, os Estados Unidos), atuando sob rígido código ético. É expressamente proibido tirar a vida dos oponentes, por mais perigosos que eles sejam, e interferir na sociedade.
 
Ao mesmo tempo, Utópico é um paizão que curte cozinhar, tomar suas cervejas e preocupado com o futuro dos filhos, como já fica claro na primeira cena. Herdeiros dos superpoderes paternos, Brandon (Andrew Horton) e Chloe (Elena Kampouris) enfrentam problemas ao iniciar a vida adulta.



O rapaz deseja seguir os passos do pai e atua como super-herói em algumas missões. Porém, sente-se pressionado por ainda não estar à altura da missão. É inseguro diante da desconfiança de Utópico, que considera o filho impulsivo demais.
 
Por sua vez, a garota repudia a obrigação familiar de proteger o mundo da ação dos vilões. Prefere investir na carreira de modelo fotográfico. Chloe não dosa sua rebeldia. Bebe, usa cocaína e tem ásperos embates com o pai quando não consegue evitá-lo no convívio familiar.
 
Cenas como a de um jantar na residência dos Sampson – que acaba em climão depois de Chloe chegar bêbada e discutir com Sheldon, numa troca de clichês sobre responsabilidades e deveres – são tão ou mais frequentes do que os momentos de ação e de combate.




 
Para variar, quem contemporiza é a mãe dos jovens, Grace Sampson (Leslie Bibb). E também o tio deles, Walter (Ben Daniels). Ambos têm poderes extraordinários, atuando na União da Justiça como Lady Liberdade e Onda Cerebral.

CONFLITO Ao contrário do irmão Sheldon (Utópico), irredutível em relação aos princípios  originais da União, Walter entende que o conflito geracional não é exclusivo da família. Na verdade, a primeira temporada destaca justamente o fato de os jovens superpoderosos defenderem outras formas de combate aos inimigos. Essa discussão fica ainda mais forte quando outros jovens super-heróis, amigos de Brandon, são mortos pelo vilão Blackstar (Tyler Mane).
 
Aliás, o conflito de gerações vem de décadas atrás. Um aspecto que a produção da Netflix incorporou da HQ original é a narrativa em duas linhas temporais. Uma no tempo presente e outra iniciada em 1929: Sheldon e Walter eram filhos de um magnata da indústria siderúrgica norte-americana quando a bolsa de Nova York quebrou e a crise econômica alastrou por todo o mundo.




 
Depois disso, o atordoado Sheldon viveu acontecimentos inusitados que o levaram à expedição ultramarina em uma ilha misteriosa, onde adquiriu poderes sobrenaturais por meio de um portal interdimensional. Entre eles, o envelhecimento desacelerado, motivo da jovialidade e de sua força física no presente, apesar de ter mais de 100 anos.
 
Walter e Grace, que era jornalista, o acompanharam, adquirindo também superpoderes, assim como os outros três integrantes da expedição. Um deles é George Hutchence  (Matt Lanter). Melhor amigo de Sheldon, ele se tornou o primeiro a questionar o código da União da Justiça, voltando-se contra o grupo.
 
Isso tudo é contado em flashbacks ao longo dos oito primeiros episódios paralelamente aos conflitos vividos pelos personagens no presente. No tempo atual, a discussão sobre o modelo ideal de atuação dos heróis cita momentos do passado.





LIMITE Em uma conversa, Walter lembra a Sheldon que poderiam ter evitado a Segunda Guerra Mundial, caso não fossem fiéis ao princípio de não intervir na trajetória da humanidade. Por isso, o questionamento da vez é sobre até que ponto vale limitar a atuação de indivíduos tão poderosos ao simples encarceramento de ladrões de banco, enquanto perigos mortais ameaçam o planeta.
 
Vale lembrar: no amplo e diverso filão das histórias de super-heróis, já foram vistos muitos dos aspectos de “O legado de Júpiter”. Batman e Superman também convivem dilemas sobre a forma mais ética de combater o mal. É extensa a lista de produções cujos poderosos protagonistas vivem problemas semelhantes, caso da animação “Invincible” e do seriado “The Boys”, sucessos recentes lançados pelo Amazon Prime Video, serviço de streaming concorrente da Netflix.
 
A ousadia de “O legado de Júpiter” de abordar tantos elementos diferentes e ainda achar espaço para violentas cenas de ação em menos de oito horas de sua primeira temporada deve-se a Steven S. DeKnight. Criador da série e diretor dos dois primeiros episódios, ele tem experiência prévia no gênero. DeKnight cumpriu a mesma função em “Demolidor”, outra tentativa da Netflix de emplacar uma série de sucesso de super-heróis, com três temporadas lançadas entre 2015 e 2018.




 
O próprio Mark Millar admite a grandiloquência de sua criação. Em entrevista divulgada pela plataforma de streaming para marcar o lançamento, o quadrinista diz que sua ambição ao escrever os volumes originais de “O legado de Júpiter” era “criar a maior e melhor história de super-herói de todos os tempos, um grande e independente ‘O senhor dos anéis’ ou ‘Game of thrones’ com super-heróis.”

Millar destacou que a trama “não é sobre pegar ladrões de banco ou lutar contra um cientista do mal em três atos”, mas “sobre crianças que nunca pediram poderes querendo seguir seu próprio caminho e sobre os pais olhando para o mundo que deveriam salvar e vendo-o mais bagunçado do que nunca”.
 
De acordo ele, uma série com a abordagem de “O legado de Júpiter” “seria impossível há 10 anos, mas agora o público está tão familiarizado com tropas de super-heróis que já está pronto para ver essa enorme subversão”.





MISSÃO Considerando as reações do público ao seriado, os super-heróis terão a árdua missão de emplacar a versão televisiva de “O legado de Júpiter”.
 
Nas redes sociais, a produção recebeu muitos comentários negativos. Em sites internacionais que mensuram avaliação de público e crítica, as notas da primeira temporada não empolgam: 45/100, no Metacritic, e 69% de aprovação no Rotten Tomatoes.
 
“Apesar de algumas lutas verdadeiramente épicas, ‘O legado de Júpiter’ é muito sobrecarregada de detalhes e lenta para entregar grandes momentos narrativos”, apontou o Rotten Tomatoes.

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