“A poesia de Martha acontece o tempo todo, do lado de dentro ou de fora da gente. Então comove.” Foi em 1987 que Caio Fernando Abreu (1948-1996) escreveu a apresentação de “Meia-noite em um quarto”, segundo livro de Martha Medeiros, então uma jovem poeta gaúcha.
Os dois haviam se conhecido um ano antes, em um almoço na casa dele, em São Paulo, um momento único na vida dela, que o tinha como referência desde a adolescência. “Nunca cheguei tão perto de um ídolo quanto naquele almoço”, relembra hoje a escritora, que, mesmo tendo iniciado a carreira na poesia, consagrou-se popularmente por meio da crônica (“Doidas e santas”) e da ficção (“Divã”).
Martha Medeiros é a convidada desta semana do Letra em Cena On-Line. Nesta terça-feira (11/5), às 20h, no canal do YouTube do Minas Tênis Clube, que promove o projeto,ela conversa com o jornalista José Eduardo Gonçalves sobre a obra de Caio Fernando Abreu. O encontro virtual terá ainda leitura de trechos de textos do escritor gaúcho feita pelo ator Odilon Esteves.
“O Caio está muito misturado com a sua obra, ele é o seu próprio texto. Estava sempre procurando um lugar, nunca satisfeito onde estava. Se estava em Porto Alegre, queria ir para São Paulo. Em São Paulo, queria ir para Londres. Sua alma estava entre o estrangeiro e o exilado. Ele buscava um lugar, até que se deu conta de que o seu lugar era o texto”, afirma Martha, na entrevista a seguir.
LETRA EM CENA ON-LINE
Martha Medeiros fala sobre Caio Fernando Abreu. Nesta terça-feira (11/5), às 20h, no canal do YouTube do Minas Tênis Clube (youtube.com.br/minastcoficial)
ENTREVISTA
Como você e Caio Fernando Abreu se conheceram?
Nos anos 1970 havia a revista “Pop”, porta-voz dos jovens. Caio era um dos redatores; e eu, uma leitora. Depois, li “Morangos mofados” (1982), que me abriu um portal em termos de literatura e de investigação emocional. Lancei “Striptease” (1985) na mesma coleção (“Cantadas literárias”) de “Morangos...”. Um dia, acho que no início de 1986, eu estava em São Paulo, e ele morava lá com um amigo meu. Ele me disse que o Caio queria me conhecer, me convidou para almoçar na casa dele. Quase infartei. Nunca cheguei tão perto de um ídolo quanto naquele almoço. Passamos, depois disto, a trocar cartas. Ele continuou em São Paulo, depois viajou para a Europa, e passei a vê-lo em sessões de autógrafos em Porto Alegre. Não vou te dizer que era amiga, nos vimos muito pouco, mas mantivemos o carinho.
Que impacto a obra dele teve em você?
O maior impacto foi com “Morangos mofados”. Eu era uma menina, estava passando pela primeira dor de cotovelo e, quando li, vi que o que sentia não era uma coisa estranha, era comum aos seres humanos. Saber que há outras pessoas (que sentem o mesmo que a gente) nos torna menos solitários. Era como uma mão invisível fazendo cafuné. Caio tem outras coisas espetaculares, como os contos “Natureza viva” e “Aqueles dois”. Ele me ajudou a me entender e me ensinou a ver beleza na dor.
Que relações se pode fazer entre a obra dele com os dias de hoje?
Hoje em dia a vida está tão dinâmica e corrida que as pessoas não param para analisar o que estão sentindo. Tudo dura segundos, minutos, instantaneamente se passa do amor para o ódio. Ontem já é pré-história, hoje os assuntos já mudaram. A gente quase se sente obrigada a ir para a frente, mesmo que não queira. Então o sentimento do Caio, pois a emoção é a matéria prima da obra dele, se tornou quase como se fosse um colo para as pessoas. O Caio abria muito tempo para os sentimentos dele, e acho que isto, de certa forma, se tornou uma novidade para os dias de hoje.
O que a pandemia provocou em você?
O isolamento não foi um sufoco, pois já venho trabalhando em casa há milhões de anos, sou caseira por natureza, introvertida. Aproveitei para transformar um roteiro de cinema em um livro de ficção (o romance “A claridade lá fora”, lançado em outubro). Mas 2020 e 2021 estão sendo muito diferentes para mim. Eu tinha posto na cabeça que a pandemia iria durar um ano. Quando chegou o Ano Novo, Era de Aquarius, pensei: ‘o pior já passou’. Aí, qual a minha perplexidade, nada tinha passado, a segunda onda foi muito violenta, as mortes aumentaram. Então entrei, e ainda estou, em um processo de avaliação pessoal. Vou fazer 60 anos em agosto, estou reavaliando tudo, vendo o que quero daqui para a frente, já que a gente não sabe direito o que será do futuro. Estou numa fase bastante reflexiva e também assustada com o país, com a polarização, com a violência física e verbal. Estamos precisando de uma vacina que não seja só contra o corona, mas também contra o baixo astral, contra a agressividade, o insulto, o pré-julgamento. Precisamos buscar algo enriquecedor, valorizar a arte, pois estamos muito pobres. É política ou pandemia, que são duas tragédias. Onde é que está a luz?
De que maneira a tragédia influenciou na sua escrita?
Afetou muito. Antes eu escrevia sobre diversos assuntos: relacionamentos amorosos, filmes, peças. A minha vida cultural está hoje resumida a livros, pois não há cinema, teatro, não estou viajando. E, mesmo quando quero falar de assuntos prosaicos, a impressão que tenho é que estou alienada. Lá fora está um caos, mais de 400 mil pessoas morrendo, então fico meio culpada, parecendo uma mulher fora do mundo. Vejo que os assuntos que abordava antes hoje parecem inapropriados para o mundo. Minha pauta mudou.
Você é ativa nas redes sociais. O que esta proximidade com o leitor te provoca?
Rede social é bom porque dá uma lustrada no seu ego. Você está ali quase que editando sua própria revista “Caras”. Essa coisa do ego me deixa um pouco envergonhada. Faço uso para divulgar meu trabalho, um comentário de algo que acho legal, incentivo a leitura. É bom saber que tem mais de 100 mil pessoas te acompanhando, dá uma sensação de pertencimento. Antes a gente vivia com 10, 20, 30 pessoas. Verdadeiros amigos, amor e família, e estávamos preenchidos. Hoje estamos muito ligados em números, e é tudo muito irreal. Faço porque a época em que vivo é assim, mas sem perder a noção de que isso é uma fábula.
Por sua atuação na imprensa, tem que escrever cotidianamente. Dá trabalho ser cronista?
Quando iniciei a carreira, tudo fluía com mais facilidade, porque eu não tinha tantos compromissos e tinha todos os assuntos do mundo para abordar. Eu me sentia mais leve e livre. Agora, são 27 anos escrevendo para jornal, o que me dá a impressão de que já escrevi sobre tudo. Presto mais atenção ao que estou escrevendo. E há todo o entorno: palestras, lives, responder e-mail, matéria para revista, programa. São coisas que vieram por eu ser colunista de jornal. Mas não reclamo, adoro fazer, trabalhar em casa. Mas eu determino meu próprio ritmo, abro espaço para a minha vida pessoal. Preciso do meu tempo para namorar, ler, ver filme na TV. Não sou workaholic, respeito muito o momento de estar comigo mesma, alimentando a vida com outras coisas.