A escritora Clarice Lispector (1920-1977) tinha caligrafia bonita, como se pode observar em suas cartas e primeiros manuscritos. Mas, ao final da vida, acometida por doenças, a letra começou a ficar mais trêmula, nervosa, quase rabiscos incompreensíveis. É o que o leitor pode observar na luxuosa edição de “A hora da estrela”, que traz a versão manuscrita integral do romance lançado por Clarice no ano de sua morte. Trata-se do primeiro trabalho em português da editora francesa Editions des Saints Pères, especializada na reprodução de originais de clássicos da literatura. A tiragem é especial, com 1 mil exemplares numerados.
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A reprodução é apresentada o mais próximo possível de sua aparência original, como se a romancista tivesse acabado de largar a caneta, revelando também correções, variações e notas utilizadas na elaboração do romance.É possível encontrar mais de uma versão para diferentes passagens-chave do texto, como, por exemplo, duas versões da cena final, o momento da morte de Macabéa – sua “hora da estrela”. A versão publicada seria o resultado da fusão dessas duas variantes.
Os originais de “A hora da estrela” estão arquivados no Instituto Moreira Salles (IMS), desde 2004. Os manuscritos são importantes não apenas pelo aspecto histórico, mas por registrarem a forma como Clarice trabalhava seus textos.
“Desde as primeiras obras, a escritora adotara o método da anotação imediata. Assim, segundo Nádia Battella Gotlib, sua biógrafa, ‘passa a carregar um caderninho, onde vai fazendo as suas anotações. São as notas, soltas, que, em grande quantidade, e referentes ao mesmo assunto, constituirão já o seu romance’”, observa o professor Fábio Frohwein, em texto publicado no site do IMS.
“Com o tempo, as anotações seriam feitas em qualquer tipo de papel, facilmente à mão, e até por outra pessoa, a quem Clarice solicitava ajuda”, continua ele. “Por isso, vemos notas de 'A hora da estrela' em fragmentos de papel, folhas de cheque e envelopes.”
FLUXOS
Clarice Lispector escrevia de forma muito peculiar: se, em alguns momentos, as anotações nasciam em fluxos contínuos, sobre folhas de caderno, em outros, adotava a chamada “escrita imediata”, ou seja, bilhetes dispersos e anotações em papéis de todos os tipos (envelopes usados, cartões de visita, folhas rasgadas, lembretes de compromissos).Em alguns momentos, quando não podia pegar a caneta ou o lápis, pedia a alguém que estivesse por perto para rascunhar o que passava em seus pensamentos – assim, não é surpresa encontrar, em alguns fragmentos, caligrafias diversas.
“Escrevo de um modo cada vez mais pobre”, observava a autora a respeito de “A hora da estrela”. “É claro que há a tentação de fazer palavras bonitas: conheço adjetivos esplendorosos, substantivos carnudos e verbos esguios que agem agudos no ar. Mas se eu transformasse o pão dessa moça em ouro – ela não poderia mordê-lo e ficaria com ainda mais fome.”
“A hora da estrela” é considerado um dos romances mais importantes de sua carreira não apenas pelas qualidades literárias, mas por apresentar uma reflexão franca sobre a própria vida e sua atividade de escritora.
A trama acompanha Macabéa, jovem que fugiu da miséria de sua Alagoas natal para se tornar datilógrafa no Rio de Janeiro. O romance evoca o confronto entre o escritor brasileiro moderno e a miséria da população por meio de um conflito linguístico: como é possível falar dessa miséria sem distorcê-la?
Clarice foi uma escritora cuja obra ardente, enigmática e responsável por um movimento ficcional absolutamente novo despertou paixões. Daí a expectativa de que a reprodução dos manuscritos chame a atenção. Em seus rascunhos, é possível notar documentos curiosos – como as 13 tentativas de título testadas por ela para nomear o romance.
Também é interessante acompanhar os vestígios da identificação da autora com seu narrador; os erros de gênero perceptíveis nos rascunhos quando usa o feminino para falar dele; fragmentos que revelam a vida pessoal da escritora, como o horário de seus compromissos e mesmo o endereço de sua casa – o do último apartamento que ela ocupou no Rio antes de morrer, em dezembro de 1977; e até marcas de batom. Esse último detalhe encantou o americano Benjamin Moser, autor de “Clarice”, alentada biografia da autora.
Moser revela que fez uma viagem no tempo ao folhear a edição com a reprodução do original do livro. “Não estão ali apenas os manuscritos do romance, mas os últimos escritos feitos por ela”, comenta ele, que manuseou inúmeros documentos e originais para a escrita do livro.
“Estão ali os esboços que Clarice fez enquanto estava no hospital, bilhetes escritos com uma caligrafia já muito ruim. Mas, para clariceanos como eu, a grande emoção foi se deparar com a marca de batom, possivelmente deixado ali quando ela retirou um excesso nos lábios. É como estar fisicamente muito perto dela”, revela o biógrafo.
bastidores Manuscritos, em geral, são matérias vivas, mas, no caso de “A hora da estrela”, despertam mais interesse por revelar, com detalhes, quase todo o processo de escrita. “Originais oferecem uma visão única dos bastidores da criação”, observa Jessica Nelson, editora-geral da editora Saints Pères.
“Trata-se de um mergulho íntimo no laboratório de escrita dos autores, de uma experiência de leitura muito diferente e comovente. Por que o autor escolheu uma palavra em vez de outra? Como ele retrabalhou a passagem que mais tarde se tornou famosa? O que havia nas versões anteriores que não existe mais na versão editada? O que podemos aprender por meio das hesitações e correções? Hoje, essas etapas do trabalho, esses documentos testemunhos, tendem a desaparecer porque os artistas usam mais o computador do que papel e caneta”, observa Jessica Nelson.
“A HORA DA ESTRELA”
• Manuscritos de Clarice Lispector
• Editions de Saints Pères
• 112 páginas
• Tiragem: 1 mil exemplares numerados
• 150 euros
• Informações: https://www.lessaintsperes.fr/3-manuscrits
Edição exige pesquisa e muitas negociações
A editora Saints Pères foi fundada em 2012, em Paris, buscando oferecer ao leitor a reprodução de grandes manuscritos da literatura. Pesquisas e negociações com detentores dos documentos permitiram a criação do catálogo com originais franceses (Victor Hugo, Marcel Proust, Gustave Flaubert) e anglo-saxões (Charlotte Brontë, F. Scott Fitzgerald, Virginia Woolf).
“Nosso gatilho foi uma grande exposição na Biblioteca Nacional da França sobre rascunhos de escritores. Achamos tudo aquilo fascinante e extremamente pessoal. Cada manuscrito é uma obra completa, única, que varia em conteúdo e em forma, revelando muitos segredos através da caligrafia”, explica Jessica Nelson, fundadora da editora.
A primeira publicação da Saints Pères foram os originais de “Higiene do assassino”, da belga Amélie Nothomb. “Ela achou nosso projeto um pouco louco, mas, como aprecia particularmente o que está fora do comum, concordou em nos seguir”, diverte-se a editora.
Embora não revele qual escritor em língua portuguesa será o próximo contemplado, Jessica aponta algumas preferências: José Saramago, Fernando Pessoa e José Mauro de Vasconcelos. (Estadão Conteúdo)
Três perguntas para...
JESSICA NELSON
EDITORA
Como você seleciona os manuscritos que publica?
Começamos pelos autores que admiramos, é claro. Jean Cocteau, por exemplo, é um dos escritores favoritos da casa. Eu o descobri e me apaixonei por ele quando era adolescente, e ele nunca deixou de me acompanhar desde então. Nicolas (Tretiakow, também editor) sempre foi admirador fervoroso de Boris Vian. Em seguida, surgem outras questões: o manuscrito da obra existe? Onde está conservado e em que condições? O documento foi digitalizado? Quais permissões precisamos obter? A partir do momento em que localizamos o manuscrito, muitas vezes começa uma longa aventura com mil perguntas e desafios.
Houve algum caso em que não foi possível reproduzir o manuscrito?
Alguns manuscritos antigos representam desafios reais em termos de reprodução. Levamos mais de dois anos para conseguir editar “A Bíblia historial” e sua iluminura, manuscrito excepcional conservado na Biblioteca Britânica, em Londres. Mas alguns outros apresentam ainda mais dificuldades – estou pensando, por exemplo, no manuscrito de “Ligações perigosas”, muito danificado. E outros são simplesmente impossíveis de encontrar – os de Shakespeare –, porque foram, sem dúvida, destruídos.
Existem detalhes que nos dizem mais coisas sobre a obra e isso só é visível nos manuscritos?
Com certeza! Os manuscritos são testemunhos únicos do processo criativo. A crítica genética (comparação entre o manuscrito e a versão final) é uma disciplina muito dinâmica. No caso de Clarice Lispector, foi fascinante observar sua escrita circular, as diferentes versões que existem do início e do final de “A hora da estrela” e as páginas de anotações feitas na hora pela escritora, e que precisaram ser posteriormente organizadas e integradas ao texto por Clarice e sua secretária. Vemos também a confusão de pronomes entre Clarice e seu narrador, o que implica uma identificação entre a escritora e sua personagem, perspectiva de leitura que diz muito.