Jornal Estado de Minas

CINEMA

Amantes são questão de Estado no filme do diretor palestino Muayad Alayan


Em uma cena de “Os relatórios sobre Sarah e Saleem”, ele está na direção da van. Ao ingressar numa rua, diz: “Estou entrando na Rua Hebron, que faz a divisa entre Jerusalém Oriental e Ocidental, e que tem sido palco de muitos confrontos entre palestinos e israelenses”. O longa de Muayad Alayan, que foi exibido na Mostra de Cinema de São Paulo há três anos, chega ao streaming da Reserva Cultural – Reserva Imovision. Não é mera coincidência que justamente agora, e há vários dias, estejam ocorrendo confrontos em Jerusalém. O Oriente Médio segue uma das regiões mais explosivas do mundo.





Muayad Alayan é um autor palestino. Fez filmes como “Amores, roubos e outras complicações”. Sua obra é marcada pelo comprometimento político e social, mostra como é tenso o equilíbrio entre os dois Estados, o de Israel e o palestino, que o primeiro não reconhece. O cinema vem dando esse testemunho, mas não, ou nunca, com o recorte escolhido por Alayan.

PRISÃO

Quando o filme começa, Saleem (Adeeb Safadi) está sendo preso com brutalidade. “O que está acontecendo, o que fiz?”, pergunta. Esse motorista palestino é casado, sua mulher está grávida. Ele tem a amante israelense Sarah (Sivane Kretchner), dona de um café. São unidos pelo sexo, exclusivamente. Ele vai preso. É investigado sob a acusação de transportar prostitutas israelenses e tentar recrutá-las para a sua causa.

Para complicar, Sarah é casada com David (Ishai Golan), militar israelense que trabalha nas forças de segurança. A acusação se torna mais grave, então. De acordo com a inteligência de Israel, Sarah pode estar passando informações sobre as atividades secretas do marido.





O filme é focado nos dois casais: Saleem e Bisan, Sarah e David. Informado, por vias extraoficiais, sobre o que está se passando, David força a mulher a um testemunho que pode inocentá-la e condenar Saleem a 10 anos de cadeia, no mínimo.

Bisan (Maisa Abd Elhadi), ao descobrir a traição, fica dividida. Quer se divorciar e, ao mesmo tempo, está presa ao casamento. O marido virou herói palestino e ela teria de expor seu comportamento. Estaria destruindo a reputação do pai de seu filho.

Alayan não está falando da grande história, mas da forma como políticas de controle social interferem no cotidiano de pessoas. Quando Sarah conta que arranjou um amante, a atendente de seu café diz que essas coisas acontecem e até podem fortalecer um relacionamento. Mas quando Sarah diz que o amante é palestino, o caso muda de figura. “Com milhões de israelenses para escolher, por que ele? Você estava tão desesperada assim?” David, ao visitar Saleem na cadeia, agride o palestino: “Por que ela? Por que a minha mulher?”.





Bem escrito, dirigido e interpretado, “Os relatórios sobre Sarah e Saleem” subverte o melodrama pela análise fria dos mecanismos de controle social. O general lamenta que David tenha se metido nessa situação. O irmão de Bisan também lamenta, mas tem a própria família e pressiona a irmã para não continuar remexendo nessa trama fedida.

NOITE

O mal-estar e o suspense andam juntos. Muita coisa ocorre à noite, enquanto a cidade dorme. O filme não é conclusivo. Não termina de forma a aliviar a barra para o espectador. Termina – olha o spoiler – com uma troca de olhares. Saleem e suas duas (ex) mulheres, David nem retribui o olhar de Sarah. O que há é uma espécie de solidariedade entre elas. Porém, por mais que sejam as vítimas da sociedade controlada pelos homens, eles também se fragilizam. A sociedade machista não tem respeito por homens fracos.

O diretor Muayad Alayan talvez nem saiba disso, mas é discípulo distante de Otto Preminger. Nos anos 1960, por meio de uma série de obras-primas, incluindo “Exodus”, sobre a criação de Israel, Preminger filmou as instituições (Exército, Igreja, política) que se superpõem aos homens. A tragédia dos indivíduos, num jogo que os ultrapassa. (Agência Estado)

Muayad Alayan é um dos jovens talentos do cinema palestino (foto: Reprodução )

Sob tensão permanente

O diretor palestino Muayad Alayan, de 36 anos, estudou cinema em São Francisco, nos Estados Unidos. Lançou o documentário “Exiles in Jerusalem” (2005), o curta “Why Sabreen?” (2009) e o longa “Amores, roubos e outras complicações”, muito elogiado quando estreou no Festival de Berlim, em 2015.





A tensão entre a Palestina e Israel perpassa a obra de Alayan, mesmo no caso da comédia. Isso ocorre em “Amores, roubos e outras complicações”: ladrão leva o carro errado, encontra soldado israelense no porta-malas e se complica com autoridades israelenses e palestinas.

Esse pano de fundo se repetirá no próximo filme dele, de terror. Em “A house in Jerusalem”, família de judeus americanos se muda para a capital israelense e vai morar numa residência que pertencia a palestinos. No jardim está o túmulo de uma jovem. A filha pequena, de 7 anos, se vê às voltas com o fantasma da garota palestina.

Alayan fundou e dirige a PalCine Productions, coletivo de diretores, fotógrafos, editores, compositores e designers que funciona em Jerusalém. A empresa oferece serviços a artistas que desenvolvem projetos na Palestina.


“OS RELATÓRIOS SOBRE SARAH E SALEEM”
• Filme de Muayad Alayan
• Com Adeeb Safadi, Sivane Kretchner, Ishai Golan e Maisa Abd Elhadi
• 131min
• Disponível na plataforma Reserva Imovision

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