Muitas coisas inspiram St. Vincent. A cantora e compositora norte-americana, cujo nome de batismo é Annie Clark, já escreveu sobre o medo de envelhecer que alguns moradores de Los Angeles têm, o uso indiscriminado de medicamentos e o quanto o mundo virtual está ganhando espaço sobre a vida real. No entanto, ela nunca se abriu tanto sobre si mesma quanto no álbum “Daddy's home”, lançado na última sexta-feira (14/5).
A premissa do trabalho – o sexto da carreira iniciada em 2007 – é o fato de que o pai da cantora foi preso após dar um golpe financeiro milionário. O caso ocorreu em 2010, mas só veio a público em 2016, quando tabloides britânicos vasculharam a vida de Annie, que na época namorava a modelo Cara Delevigne.
A faixa-título trata abertamente do assunto. A cantora fala sobre a visita ao pai na cadeia e familiares de outros detentos que lhe pediram autógrafos. Também há culpa e arrependimento. “Todos nascemos inocentes, mas alguns se ferram/ Para onde você pode correr quando o bandido está dentro de você?”, diz um dos versos.
Para encarar tamanha exposição, St. Vincent assumiu uma persona neste trabalho. A personagem usa peruca loira com mechas pretas e roupas dos anos 1970, como calças boca de sino, macacões e casacos de pele.
Foi assim que ela iniciou a divulgação do trabalho, no início de março passado, quando um misterioso vídeo foi publicado em seu canal no YouTube. Dois dias mais tarde, St. Vincent lançou o primeiro single, “Pay your way in pain”, já dando indícios dos caminhos que o novo trabalho seguiria, aludindo à sonoridade dos anos 1970.
Em 1º de abril, veio “The melting of the sun”. Na música, que ganhou videoclipe animado, ela cita Joni Mitchell, Tori Amos, Nina Simone e Marilyn Monroe.
Por fim, St. Vincent lançou o single “Down” no último dia 10, com direito a vídeo, incorporando a atmosfera de mistério criada no teaser do trabalho.
PSICODELIA
Como os três singles já mostravam, “Daddy's home” é um disco com bases psicodélicas construídas por meio de teclados, guitarras e coros. No panorama geral, o registro flerta com a soul music. Ela repete a parceria com o produtor Jack Antonoff, queridinho de Taylor Swift, Lorde e Carly Rae Jepsen.
A segunda faixa, “Down and out downtown”, é um dos pontos altos. St. Vincent explora suas habilidades como cantora e guitarrista. Riffs interessantes acompanham muito bem a progressão da letra.
Na melancólica “Live in the dream”, o disco diminui o ritmo e dá espaço para uma balada formada por sons distorcidos. “The laughning man” mantém a levada lenta, ainda que a música cresça depois do último refrão. “Somebody like me”, outra balada, acena para o início da carreira de St. Vincent, quando fazia músicas marcadas por poucos elementos nos instrumentais.
LOU REED
“My baby wants a baby” retoma teclados e coros, com a sensação de nostalgia. “...At the holiday party” ecoa “Walk on the wild side”, clássico de Lou Reed (1942-2013), enquanto na ótima “Candy darling” a habilidade de Annie como cantora ganha destaque.
Apesar de longo, o álbum engana. As 14 faixas somam pouco mais de 43min. Três são interlúdios com menos de um minuto.
De certa forma, “Daddy's home” completa a escalada rumo ao mainstream que St. Vincent percorre desde seu álbum autointitulado lançado em 2014. Naquela época, a cantora veio pela primeira vez ao Brasil, com direito a show em BH. Ela também subiu ao palco do Hall da Fama para tocar “Lithium”, do Nirvana, na cerimônia em que celebrou a banda de Kurt Cobain.
O caminho ganhou maior validação com o elogiado “Masseduction” (2017), que lhe rendeu um Grammy, com direito a performance na premiação ao lado de Dua Lipa.
Antes disso, o trabalho de St. Vincent poderia ser considerado esquisito demais, no bom sentido. “Marry me” (2007), “Actor” (2009) e “Strange mercy” (2011) têm inúmeras qualidades, mas carecem de apelo comercial. Não à toa, depois desses discos ela colaborou com ninguém menos que David Byrne no álbum “Love this giant” (2012).
Com “Daddy's home”, St. Vincent se consolida como uma das artistas alternativas mais interessantes e multifacetadas dos últimos anos. E agora sem se preocupar com o pai encarcerado. Aliás, como o título sugere, ele saiu da cadeia em 2019.
“DADDY'S HOME”
.De St. Vincent
.Loma Vista Recordings/Universal
.14 faixas
.Disponível nas plataformas digitais