Embora as medidas de restrição impostas pela pandemia estejam afrouxadas na cidade histórica mineira, a nona edição da Mostra de Artes Cênicas Tiradentes em Cena permanece virtual, diferentemente do ano passado, quando parte da programação contou com a presença do público. O motivo, explica Aline Garcia, idealizadora e diretora-geral do festival, é a antecedência com que ele começa a ser planejado.
“Apesar do desejo de ocupar espaços, não seria responsável pensar em programação presencial sem a certeza de que isso poderia, de fato, acontecer”, afirma. “Na internet, o espaço que a gente ocupa é ilimitado, no sentido dos alcances. Trabalhamos em rede para incluir projetos de diversos lugares, que vão ocorrer em diferentes plataformas.”
A partir desta quarta-feira (19/5), a mostra oferece programação virtual com lives, pré-estreias, espetáculos pré-gravados, oficinas e seminário sobre produção cultural.
AÇÃO
O foco desta edição é o afeto, em seu sentido amplo. “Entendemos afeto como sentimento, mas também como verbo. Uma ação. No último ano, o mundo inteiro foi afetado pela pandemia. As artes cênicas e os artistas não escaparam disso. A quarentena e o isolamento social trouxeram novos temas para a produção teatral e pretendemos refletir sobre isso”, diz Aline Garcia.
A seleção comprova que novos processos transformaram o fazer teatral no último ano. “Ainda não conseguimos entender totalmente o que essas mudanças representam. Ganhamos muitas formas de fazer teatro, que vão muito além da caixa cênica. Ainda não há definição para o teatro virtual, que surgiu por pura necessidade, mas acredito que futuramente ele vá representar um novo paradigma.”
Por enquanto, o universo virtual oferece a possibilidade de construir a agenda ignorando fronteiras geográficas. O Tiradentes em Cena terá dois espetáculos estrangeiros na lista de peças disponibilizadas no YouTube até domingo (22/5).
O argentino “Devil”, dirigido por Sergio Albornoz, conta histórias de cinco mulheres afetadas pela violência. Já o espanhol “No fi”, com direção de Mauro Molina, faz uso da tecnologia para refletir sobre questões contemporâneas.
Ao todo, 17 espetáculos pré-gravados serão disponibilizados gratuitamente pelo YouTube do Tiradentes em Cena, entre eles “Desperte!”, da companhia mineira Cia. Dois em Um, e o infantojuvenil “Dois pais”, do Coletivo Macacos Alados.
Além do YouTube, a programação ao vivo poderá ser acompanhada no Instagram e na plataforma Zoom. O grupo Corpo Coletivo, de Juiz de Fora, estreia a peça “Listas, números, assuntos inacabados”. Outra montagem inédita é “Fragmentos possíveis”, escrita e dirigida por Gabriela Mellão.
Sucesso na web durante a pandemia, Silvero Pereira, que chamou a atenção como o justiceiro Lunga no filme “Bacurau”, apresenta “Bixa viado frango”. No sábado (22/5) à noite, essa transmissão será seguida de bate-papo do ator com o público.
SEMINÁRIO
Aline Garcia destaca que o Tiradentes em Cena de 2021 é resultado de uma série de parcerias. Com o Câmpus Cultural DAC – UFMG, a mostra realiza o seminário Modos de produção e gestão cultural, que começou na segunda-feira (17/5) e vai até hoje (19/5). Realização com o Sesc Minas, o Ciclo de capacitação Sesc Tiradentes em cena tem rodas de conversa, workshop e oficina.
“O teatro resistiu e continua resistindo. Existe uma variedade de desafios em fazer uma edição completamente on-line, principalmente técnicos, mas a gente ganha muito em interação com o público. Isso também dá a oportunidade de uma pessoa de qualquer lugar acompanhar a nossa programação”, afirma Aline. A mostra foi realizada com recursos da Lei Aldir Blanc.
TIRADENTES EM CENA
De hoje (19/5) a sábado (22/5). Gratuito. Transmissões no YouTube (youtube.com/tiradentesemcena), Instagram (@tiradentesemcena) e plataforma Zoom. Informações: www.tiradentesemcena.com.br
PROGRAMAÇÃO
HOJE (19/5)
>> 14h: Seminário Modos de produção e gestão cultural. Com Andrea Rodrigues (Segunda Preta), Tina Dias (Armatrux), Gustavo e Dominique (Zap 18) e Juliano Pereira (Teatro da Pedra)
>> 19h: Abertura oficial
>> 20h: Homenagem a Elisa Lucinda
>> 21h: Live com Samara Felippo e Caroline Figueiredo
QUINTA (20/5)
>> 17h: Live do projeto Teatro para curiosos, com Simone Kalil
>> 19h: Peça “Listas, números, assuntos inacabados”. Com Vinícius Cristóvão
>> 20h: Peça “12 pessoas com raiva”. Com Pandêmica Coletivo Temporário de Criação
SEXTA (21/5)
>> 16h: Ciclo de capacitação Sesc em Minas Tiradentes em cena
>> 20h: Peça “Vaca”
Com Bruna Betito
>> 21h: Cena encontro (live)
SÁBADO (22/5)
>> 11h: Peça “Escrito nas estrelas” Com Benvinda D'Angelo
>> 14h: Resultado do Cenas curtas (live)
>> 18h: Cena encontro – “Arte, periferia e transformação social”
>> 20h: Peça “CLÃ_DESTIN@: Uma viagem cênico-cibernética”. Com Clowns de Shakespeare
>> 21h: “Na boca da palavra” Com Elisa Lucinda e Geovana Pires
>> 22h: Peça “Bixa viado frango” Com Silvero Pereira
NO YOUTUBE
Produções disponíveis até sábado (22/5)
. “A paixão segundo Adélia Prado” (RJ)
. “Dois pais” (RJ)
. “Desperte!” (MG)
. “Avoar” (MG)
. “Manual para náufragos” (PR)
. “Fragmentos possíveis” (SP)
. “Translúcido” (SP)
. “Quero ser branca” (SP)
. “Graúna” (SP)
. “Sal” (MG)
. “O cravo e a rosa” (MG)
. “Mulheres que nascem
com os filhos” (RJ)
. “No fi” (ES)
. “Devil” (Argentina)
. “Vida: Relatos de uma mulher só, ou quase isso” (MG)
. “Serenata partidas” (MG)
. “O mundo mágico das marionetes” (MG)
Elisa Lucinda em três tempos
Elisa Lucinda é a homenageada desta edição. Lisonjeada, a atriz e poeta revela que Tiradentes foi uma das primeiras cidades onde se apresentou no início da carreira. “Tenho uma certa intimidade e carinho pelo público de lá. Fico muito emocionada em ser lembrada assim. É muito bom saber que tenho uma obra que dá para identificar e ser celebrada”, afirma.
Quando soube que o tema da mostra seria o afeto, Elisa Lucinda se identificou de imediato. Segundo ela, seu trabalho tanto na escrita quanto nas artes cênicas se relaciona com esse sentimento.
“Afeto engloba a empatia e o nosso estar no mundo. Não sei separar o trabalho da vida, do amor, do tempo. Para mim, não tem essa história de não trabalhar. Estou sempre escrevendo. Meu trabalho tem a função intrínseca de afetar, percebo isso nas histórias que as pessoas me contam”, diz.
Elisa vai participar da mostra de três maneiras. A primeira, hoje à noite, durante a abertura. A segunda com o espetáculo “A paixão segundo Adélia Prado”, que ficará disponível para o público até sábado (22/5). E a terceira ao vivo, com o recital “Na boca da palavra”, no sábado à noite. Em ambos os espetáculos, ela conta com a parceria de Geovana Pires.
Gravado há cerca de três anos na Casa de Cultura Laura Alvim, no Rio de Janeiro, “A paixão segundo Adélia Prado” revela um certo erotismo na obra da mineira, cuja poesia é marcada pela fé cristã. Para Elisa, “a fé de Adélia não exclui a sexualidade. Ela tem uma paixão por Deus.”
RECITAL
O recital “Na boca da palavra” é um mergulho na obra poética de Elisa. “São aqueles poemas que sacodem a poeira, que representam uma transformação”, diz.
A transformação, aliás, tem marcado a pandemia da artista. Aos 63 anos, Elisa conta que não parou de trabalhar um dia sequer desde que se trancou em casa. As tragédias que vêm assolando o Brasil servem de combustível para sua produção.
“Temos que vencer essa guerra em nome das novas gerações, em nome de um país que estávamos construindo e rapidamente entrou em colapso”, afirma a escritora e atriz.
Para ela, a vida on-line é o mais difícil das restrições impostas pela pandemia. “Engraçado o quanto isso nos afastou e, agora, é a única coisa que nos aproxima. Ela supre a ausência do encontro, mas ainda a considero um grande problema. Depois de navegar, me sinto muito cansada. As máquinas nos sugam muito.”
Elisa se preocupa com as crianças hiperconectadas, dependentes da tecnologia e gadgets para fazer tarefas simples do dia a dia. “Vejo-as como seres replicantes e condicionados demais. É o não olhar para o outro, para o mundo que está à nossa volta.”
No início da pandemia, quando os primeiros lockdowns foram adotados e pipocaram imagens da natureza tomando conta de espaços até então urbanos, Elisa ficou encantada e assustada com essa possibilidade. Para ela, está aí o sinal de que a presença humana se tornou “predatória”.
“A humanidade chegou numa grande encruzi- lhada. Estamos desmatando desenfreadamente e não vemos problema nisso. Agimos como se fôssemos donos de tudo, como se tudo fosse nossa propriedade. Os indígenas e os africanos têm a filosofia de que nós é que pertencemos à Terra. É nisso que acredito”, observa.
APLAUSOS
Como cidadã, como ela mesma diz, a maior saudade é das rodas de samba. Como artista, sente falta do aplauso. “São estalinhos mágicos”, descreve Elisa.
Recentemente, a artista se envolveu em uma série de projetos. “Filmei em São Paulo e no Uruguai, com todos os cuidados necessários.” Este ano, Elisa Lucinda pretende lançar a sequência de “Livro do avesso – O pensamento de Edite” (2019), com direito a podcast e ações nas redes sociais.