“Vim aqui pra te avisar/ Que o futuro já acabou/ E a gente é sobrevivente”, diz o verso inicial da música “Sem mentir”, da banda curitibana Tuyo. A letra, que parece resumir o sentimento enfrentado por muitos brasileiros desde o início da pandemia, foi escrita em 2019, quando o novo coronavírus ainda não tinha se espalhado pelo mundo.
Da mesma forma, as outras oito faixas que compõem o novo disco do grupo são anteriores à crise sanitária, mas soam como se tivessem sido escritas no contexto do isolamento social.
"É triste pensar que nós não saímos de um estado de espírito eufórico, festivo e feliz para uma pandemia. Nós já estávamos num ritmo muito acelerado, pensando em quais rumos a nossa vida tomaria enquanto cidadãos. Essa bigorna já estava sobre nós. A pandemia só destacou um sentimento muito anterior a ela", afirma Lio Soares, uma das integrantes da banda.
O primeiro volume de "Chegamos sozinhos em casa", álbum que o trio lançou na última quinta-feira (27/5) pela Natura Musical, é um relato sensível sobre saúde mental e amadurecimento. De certa forma, o trabalho nasceu do afastamento dos três integrantes, Lio, Lay Soares e Jean Machado, que moravam juntos e decidiram se mudar cada um para uma casa diferente.
DISCUSSÃO
"A gente não se deu muito bem", explica Lio. "A convivência era muito intensa porque não era somente em casa. Estávamos juntos nos shows, nas viagens, nas gravações. Eu sinto que, justamente para preservar a relação, sempre teve a consciência de perceber até que ponto começa a se tornar violência um entrar na vida do outro. Por isso que eu acho que esse primeiro volume é uma grande discussão territorial."
Segundo disco da carreira, "Chegamos sozinhos em casa" sucede a "Pra curar" (2018), que por sua vez foi precedido pelo EP "Pra doer", responsável por colocá-los no radar como uma das principais novidades da música brasileira. O novo registro começou a nascer em meados de 2019, quando Jean passou a pesquisar beats e timbres que desafiassem a banda.
O processo foi rápido. Em janeiro de 2020, eles se reuniram para compor músicas juntos pela primeira vez. Nos trabalhos anteriores, as composições eram "de gaveta" e cada integrante dava a sua contribuição. No mês seguinte, houve a gravação e, no dia em que o governo de São Paulo decretou a primeira quarentena, em 6 de março, eles finalizaram as vozes do álbum.
NOTÍCIAS
"Tudo o que precisava ser feito presencialmente a gente contou com as forças do universo, a Beyoncé abençoando, sei lá", brinca Lio. "Estávamos no último dia de captação de vozes, já sabendo das notícias, de tudo o que estava acontecendo no mundo. Quando terminamos, o estúdio fechou, e a gente foi correndo para casa. Passamos raspando."
Naquele momento, a previsão de lançamento era maio de 2020. A ideia era lançar o disco e cair na estrada com ele. "Quando estávamos concebendo, já tínhamos essa vontade de visualizá-lo sendo executado ao vivo. Tínhamos muita vontade de ver como ele iria soar", conta Jean.
Apesar de eles terem alimentado a esperança do retorno dos shows, isso ainda não foi possível, e o lançamento sofreu três adiamentos, passando de maio para agosto; depois para novembro de 2020, e finalmente maio de 2021.
Ainda assim, eles lançaram os singles "Sem mentir", em julho passado, e "Sonho da Lay", em outubro, esse último em parceria com o cantor carioca Luccas Carlos. "Qualquer coisa me fez entender que, se eu fechar os olhos,/ Eu vou sumir", diz um trecho da música escapista.
MELANCOLIA
Outras faixas do álbum, como "O jeito é ir embora", "O que você diria agora" e "Tem tanto Deus" mesclam melancolia e existencialismo com letras bastante subjetivas, que formam imagens oníricas impulsionadas pela sonoridade eletrônica do trabalho.
"Chegamos sozinhos em casa" é um disco pop cuja estética prova que a Tuyo se afastou do folk eletrônico explorado nos primeiros trabalhos sem deixar de soar futurista. A novidade é bem-vinda e eles não abandonam seu principal e melhor atributo: a qualidade das letras, que, em geral, lançam um olhar poético para situações cotidianas.
A primeira faixa, "Vitória Vila Velha", é um bom exemplo disso. "Passei pela ponte e vi por cima dela/ O que quase ninguém viu/ Senti o vento bater/ Deixei minha pele receber", diz o verso inicial da canção.
"Nosso desejo era criar um disco de refrão, fácil de ser escutado", explica Jean. "O sentimento que permeou a produção foi o de remover coisas. Ser um trabalho mais limpo."
Lio comenta que o compromisso da banda “sempre foi a sinceridade". E diz: "Enquanto nos mantivermos honestos com nós mesmos, acho que o público vai captar a nossa mensagem. Nossa maior expectativa é sempre a visceralidade da lírica".
Bem relacionado, o trio tem uma lista extensa de colaborações com outros artistas, que inclui Baco Exu do Blues, Fióti, Rashid, as bandas Fresno e Terno Rei, além dos artistas mineiros Luiza Brina e Bemti.
No novo trabalho, eles contam com a presença de Lucas Silveira (da Fresno) na faixa "Pronta pra cair"; Jaloo em "Pra curar"; e Jonathan Ferr em "Toda vez que eu chego em casa". A produção do disco é assinada por Janluska e contou com a colaboração de Bruno Giorgi e Jvck.
PARCERIAS
Para Lio, essas parcerias expandem as possibilidades da Tuyo. "Ser uma banda já abre muito o leque de opções, ainda mais a nossa, que é formada por três intérpretes que também são compositores. Quando a gente colabora com outros artistas e produtores, isso enriquece demais o nosso universo, traz outras perspectivas para o trabalho".
Reconhecido pela qualidade das performances ao vivo, o trio amarga as saudades do palco e dos fãs, mas não esconde a empolgação com as possibilidades que as apresentações virtuais trazem.
"No palco, a gente conseguia resolver umas coisas emocionais muito profundas, só de olhar um para o outro e também para o público. Era importante saber que havia mais pessoas compartilhando o sentimento de determinada música", diz Lay.
Lio concorda. "Ao vivo, a troca é incontrolável e incensurável. O olho no olho não permite pausa para filtrar. Eu sinto falta dessa falta de filtro; de enxergar as pessoas todas vulneráveis comigo. E isso é uma busca de qualquer artista. A gente só se comunica para não se sentir só. O palco permite que a gente se sinta acompanhada na solidão. Sem a experiência dos shows ao vivo, eu me sinto incompleta", afirma ela.
Ao mesmo tempo, ela reconhece que as lives permitem que mais pessoas de diferentes lugares entrem em contato com a Tuyo, uma banda independente que não consegue chegar em determinados lugares.
"Conseguimos entregar novas possibilidades de espetáculos para quem está impossibilitado de ir ou para quem mora longe, ou em cidades pelas quais a gente não tem recursos para passar ainda", diz.
Em março passado, a Tuyo representou o Brasil no festival norte-americano South By Southwest (SXSW), realizado de forma virtual em virtude da pandemia. A apresentação chamou a atenção do jornal The New York Times, que a elencou entre as 15 melhores do evento.
O reconhecimento deu a eles um novo gás, mas as expectativas do trio em relação ao futuro pós-pandemia envolvem a cena brasileira. "Espero que a gente consiga reaver recursos a tempo de resgatar espaços, casas de shows, profissionais, festivais. Que a gente consiga acertar o timing na nossa categoria. Espero que a gente consiga recuperar as perdas que sofremos desde o ano passado causadas pela má administração dos recursos no país", afirma Lio.
O segundo volume de "Chegamos sozinhos em casa" deve ser lançado nas plataformas digitais ainda neste ano, segundo a banda. Por fim, será lançada uma versão deluxe do trabalho que une as duas partes.
"Chegamos sozinhos em casa – Vol. 1"
De Tuyo
9 faixas
Natura Musical
Disponível nas plataformas digitais