Lançado em 2012, o romance “A vida não é justa” (Editora Intrínseca) – o primeiro da trilogia “Segredo de Justiça” e “Velhos são os outros” (finalista do Prêmio Jabuti) – segue firme no ranking dos 100 livros mais vendidos da Amazon. Crônicas envolvendo personagens ficcionais foram construídas com profundo realismo, extraídas de um observatório privilegiado: a autora é a magistrada carioca Andréa Pachá, com 27 anos de carreira, que já realizou mais de 20 mil audiências.
Depois de atuar por duas décadas à frente da Vara de Família, agora ela se dedica à Vara de Sucessões e Curatela. Com extrema sensibilidade, Andréa Pachá transporta para as crônicas a dimensão humana do desamparo diante da paixão e da morte, sentimentos universais que estão no cerne dos julgamentos. Enquanto “A vida não é justa” aborda as rupturas judicializadas entre casais, “Segredo de Justiça” versa sobre as relações interparentais envolvendo a guarda de filhos. “Velhos são os outros” fala sobre o fim da vida, o envelhecimento.
Nesta quinta-feira (10/06), às 19h, Andréa Pachá estará ao vivo no Sempre um Papo, com Afonso Borges, em live com transmissão no YouTube, Instagram e Facebook do projeto.
De onde veio a inspiração para o título do livro “A vida não é justa”, o primeiro de uma trilogia?
Durante 20 anos, fui juíza numa vara de família. E todos os dias em que ia para o fórum para as audiências, percebia as histórias riquíssimas para contar. Havia uma expectativa grande de que a justiça fosse feita na hora das rupturas amorosas. E a gente olha para aquilo e constata que, no fim do amor, não tem justiça. Lógico, havia a expectativa de justiça, porque afinal os casais procuraram o Judiciário. Mas foi experiência não só do exercício da magistratura, mas uma reflexão sobre o desemparo de nossa condição humana. Conflitos que eram tão densos, tão humanos e tinham essa interface com a minha experiência dupla, porque, antes de ser juíza, fui roteirista de cinema. Eu tinha um grupo de roteiro orientado pelo (dramaturgo mineiro) Alcione Araújo (1945-2012). Ele, inclusive, escreveu o prefácio para “A vida não é justa” e morreu no dia seguinte ao lançamento do livro. Escrevi a vida inteira, mas o exercício permanente da escrita foi experiência que nasceu nesse curso de roteiro, ficamos mais de cinco anos nos reunindo, discutindo textos e fazendo leituras. Quando me voltei para a magistratura, fiz um concurso, vi o quanto havia sido rica essa experiência para me ajudar a enxergar a densidade dos dramas humanas que chegam às audiências.
Quais eram as situações mais frequentes nessa trajetória na vara de família? A senhora identificou algum padrão, uma repetição de histórias nas rupturas?
As histórias que escrevi são todas de ficção com um olhar na realidade, pois ninguém escreve ficção do nada, mas a partir de nosso olhar do mundo. E o que tentei fazer foi contar as histórias universais, porque todo mundo experimenta a dor das rupturas de forma individualizada, muito subjetiva. Mas há um padrão que irmana essas pessoas no sentimento. Eu identificava com muita clareza quando lia “Fragmento de um discurso amoroso”, de Rolland Barthes (1915-1980), que faz os repentes do sujeito enamorado, como se apaixona, a linguagem, o significado de cada palavra. Eu conseguia ver aquilo ao vivo. Apesar da experiência do amor ser individual e subjetiva, a ruptura tem um padrão muito parecido para todas as pessoas. Embora esse padrão fosse repetido, o momento do encantamento e da paixão, embora já soubéssemos que as rupturas chegariam em algum momento pelo desgaste do cotidiano ou pelo fim do amor, cada história era contada de maneira única como se nenhum padrão existisse. E o que mais me impressionava era o sentimento de fracasso, quando as pessoas não conseguiam manter um relacionamento em que havia a expectativa de que deveria durar por toda a vida. Quando, na verdade, não há nada de errado. Eu disse isso muitas vezes aos casais: não pode ser de fracasso essa sensação. Ao contrário, você conseguir manter uma relação amorosa, viver o projeto de vida a dois, projetar o futuro, idealizar a família, tudo isso é um projeto humano de vida e não fracassa porque o amor chega ao fim. O meu olhar era especialmente para o fim do amor, porque eram essas as experiências que chegavam ao fim. O padrão, então, era o desamparo: “como isso ocorreu comigo e só comigo”. Um sentimento muito angustiante. Tem algumas histórias também de recomeços, de reconciliações, mas em número muito menor. E também histórias de encontros, porque também fiz casamentos. Mas como foi escrito ao longo de muitos anos e a sociedade mudou muito até 2012, que foi quando publiquei, é também possível acompanhar as transformações dos comportamentos e relações afetivas ao longo do tempo.
O que a senhora aponta como a maior transformação na sociedade nas últimas décadas?
O afeto passou a ser elemento estruturante no direito das famílias. A possibilidade de um padrasto inserir um nome no registro de nascimento sem excluir o nome do pai, as relações homoafetivas – disso eu quase não tenho histórias, porque há dez anos essas relações ainda não tinham chegado na vara de família para o desenlace, não era ainda nem reconhecido o casamento entre pessoas do mesmo sexo. A adoção, a igualdade entre filhos, a igualdade de gênero, essas transformações todas são recentes. Estamos falando de um país que se fortalece a partir da Constituição de 1988. Infelizmente, já vemos uma reação muito grande e tentativa grande de retrocesso. Tudo o que conseguimos construir em termos de democracia em direitos das famílias foi a partir da liberdade e o afeto. Então, precisamos preservar esses valores para impedir o retrocesso social, como a redução da mulher à condição de mãe e cuidadora. O que nós conseguimos foram avanços significativos na perspectiva dos direitos humanos e fundamentais. É preciso preservar esses valores.
Também em “Segredo de Justiça” e “Velho são os outros” é retomada a temática do desamparo da condição humana diante do que acredita ser um fracasso...
O amor eterno fracassado, as relações familiares fracassadas e a eternidade da vida fracassada. Na verdade, esses livros começaram a circular com mais força entre os psicanalistas do que entre os juristas. As histórias estão centradas nos aspectos humanos. Tem uma história que se chama “Fala quem pode”, a que mais gostei de escrever, que dá bem o sentimento dessa nossa condição humana tão precária, tão contraditória e tão bonita, porque apesar disso, apesar do fim, apesar das frustrações, o ser humano tem capacidade de amar, de se apaixonar e de desejar a eternidade. Adorei escrever essas histórias. “Fala quem pode” é a história de uma mãe, já idosa, que acompanha a filha numa audiência de separação consensual, que era para ser algo muito simples. É uma história quase silenciosa, mas que tem a densidade da angústia desse momento.
Eram frequentes nos processos de fim de relação situações envolvendo violência, principalmente contra a mulher?
Tem histórias que envolvem violência, mas tive muito cuidado para não escrever nada que pudesse expor alguém. Trabalhei isso com muito cuidado. Mas foi curioso porque comecei a receber mensagens de pessoas me cobrando que escrevesse a história delas. As histórias apresentam muitos cortes. Há cortes etários, sociológicos, porque histórias foram escritas em momentos diferentes e a sociedade mudou muito rapidamente nos últimos 20 anos. Mas o que sou aparece naquelas histórias. O meu filho, à época, me perguntava: “Quando você vai escrever uma história que o homem ganha no final?”. As minhas histórias todas protegiam as mulheres. É claro que isso não foi deliberado, mas eu sou uma mulher feminista. Então, meu texto e meu atuar profissional é feminista. Então isso aparece. Eu não faço isso julgando ninguém. Tento excluir do julgamento moral todas as personagens que construo, porque isso também é uma realidade numa vara de família. Não tem bom e mau. Cada um tem as suas razões para estar ali. Então, ouvir as razões e escrever mesmo sem julgamento revela de um jeito muito claro a sociedade em que vivemos. Ela é estruturada machista, para o homem mandar, para ser o chefe da família, para a mulher ser mais servil.
Como a senhora avalia as denúncias de machismo estrutural, inclusive em sentenças proferidas por juízes homens ao julgar situações de violência contra a mulher?
Infelizmente, o fato de a juíza ser mulher não necessariamente significa que ela também não será machista, pois ela se insere numa sociedade estruturada machista, então é um exercício diário de compreensão da necessidade de vencer essa chaga, pois a violência contra a mulher é um câncer, é desesperador. Esse padrão também aparece em disputas por herança, na relação entre irmãos, na hora do testamento quando um pai beneficia mais um filho do que o outro, nas disputas por curatela, quando a pessoa que envelhece tem patrimônio, há interesse de todos os filhos, mas quando não tem patrimônio, sobra para as mulheres o cuidado com o envelhecimento. Tudo isso é também muito revelador, é um ambiente muito rico para compreendermos a sociedade em que vivemos. Então, as três obras trazem um corte de uma sociedade patriarcal, injusta, violenta e desigual, pois conto histórias de casais mais abastados e casais mais vulneráveis, e isso dá bem a dimensão dessa desigualdade. Só percebi depois que as histórias estavam escritas que realmente é possível olhar para o nosso país a partir dessas histórias. E tem a repetição.
Qual é o seu próximo projeto?
Não consigo não escrever. Escrever é a forma como tento organizar o mundo. Não consigo nem lembrar algum momento de minha vida em que não tenha precisado escrever. Estou com dificuldades neste momento da pandemia. É muito dura a experiência de ser brasileira neste momento, é devastadora. Estou com muita dificuldade de escrever ficção, porque a realidade está tão dura, pesada, que tudo parece banal. Acho e espero que isso passe, não há mal que dure para sempre, vamos superar essa dor toda, esse desacerto, pois não é só a pandemia. É a pandemia mais a crise diária que tem confrontado a gente. Quando passar, a nossa geração vai contar essas histórias dessa experiência.