Seria um drama de novela, se não tivesse acontecido na vida real. E em Belo Horizonte, em outubro de 1961, com cenários como a Rua Palmira, no bairro da Serra; o edifício Niemeyer, na Praça da Liberdade; e a Redação do extinto “Diário da tarde”, na Rua Goiás. O protagonista desta história tinha 65 anos, e observava, meio alheio, a confusão à sua volta. “Estão brigando por minha causa, não é?”
É em alta combustão que o jornalista mineiro Marcelo Bortoloti, de 45 anos, dá início à biografia “Guignard: Anjo mutilado” (Companhia das Letras), com lançamento nesta segunda-feira (14/6). Em quase 500 páginas, a obra acompanha, de forma vívida e com grande reconstituição de época, a trajetória do pintor e professor Alberto da Veiga Guignard (1896-1962).
O crítico Frederico Morais já afirmou que, entre os mestres modernistas, Guignard é o autor da obra “mais comovente”. Foi também Morais quem detonou o imbróglio que dá início à biografia. Em novembro de 1960, no “Diário da tarde”, ele começou a publicar uma série que denunciava a exploração dos chamados protetores do artista. “Guignard não faz mais o que quer, não come o que deseja, mora onde lhe indicam e hoje, dura verdade, pinta o que seu médico e atual ‘protetor’ lhe fala.”
A repercussão das reportagens não demorou a tomar dimensão, com uma crônica de Rubem Braga publicada na revista “Manchete”, então a de maior circulação no país. O principal protetor denunciado por Morais era o médico Santiago Americano Freire, que havia acolhido Guignard em sua casa, na Rua Palmira, alguns anos antes, cuidando não só de sua saúde, debilitada pelo diabetes e pelo excesso de álcool, como também de sua criação artística.}
DEVOLUÇÃO
Tornada pública, a questão gerou vários desdobramentos ao longo de um ano, até que, em um rompante, Americano Freire colocou Guignard em seu Oldsmobile preto. Dirigiu, à noite, até o Edifício Niemeyer, onde viviam, na cobertura, a escritora Lúcia Machado de Almeida e o marido, Antônio Joaquim de Almeida, fundador do Museu do Ouro, em Sabará.
Naquele momento, todos com ânimos exaltados, o médico “devolvia” Guignard, que tinha sido hóspede em anos anteriores do casal. Houve, posteriormente, a criação da Fundação Guignard, que administrava sua carreira e sua vida. O artista deixou Belo Horizonte e foi morar em Ouro Preto. Morreu aos 66 anos, pouco mais de seis meses após a fatídica noite.
Bortoloti mantém o fôlego inicial ao longo da biografia, unindo a escrita fluida com a precisão de sua pesquisa. “É emblemático que esse artista, que foi recebido na sociedade mineira, era uma figura genial e, ao mesmo tempo, ingênua, que precisava de todo tipo de proteção. A elite local talvez não tenha conseguido lidar bem, a partir do momento em que ele passou a valer muito no mercado de arte”, diz o biógrafo.
O autor, nascido em Muzambinho, no Sul de Minas, é graduado em jornalismo na PUC-Minas e radicado há 20 anos no Rio de Janeiro. “Como na vida de todo mineiro, Guignard era uma figura presente. Acho que sua pintura é mais palatável, mais fácil para um leigo gostar.”
No entanto, ele acredita que Guignard não é tão conhecido nacionalmente quanto o é em Minas – nem quanto a sua obra deveria. “Guignard tem certas coisas que o afastam do público. Não há uma grande coleção dele em qualquer museu público, sua obra está em coleções privadas. Ou seja, está restrito ao universo de gente que é mais próxima das artes. A partir deste contexto, pensei em escrever uma história mais dinâmica, que trouxesse mais gente para se familiarizar com o universo dele.”
O jornalista bateu, sem sucesso, em algumas portas até 2017, quando teve o aval da Companhia das Letras para a empreitada. “Eu me propus a fazer um livro baseado em documentos. As informações que até então a gente tinha do Guignard eram muito baseadas nas falas dele. Havia muita imprecisão nas histórias que ele contava, que às vezes tinham mais de uma versão.”
EUROPA
Um terço da vida do artista, a parte inicial, foi passada na Europa. Nascido em Nova Friburgo, na Serra Fluminense, Guignard viveu dramas em excesso. O lábio leporino nunca resolvido após cirurgias lhe deixou com uma maneira estranha no falar e um trauma que o acompanhou por toda a vida. A morte do pai na infância levou sua mãe a um novo casamento e a uma vida nômade (e algo luxuosa) na Europa. Guignard só retornou definitivamente para o Brasil com a crise de 1929.
Para a parte europeia, que ocupa o primeiro terço da biografia, Bortoloti fez uma imersão, viajando até as 12 cidades onde Guignard morou, na Alemanha, Itália, França e Suíça. “Os locais tinham algum tipo de registro de sua passagem por lá, além de alguns arquivos no Brasil. O Tribunal de Justiça do Rio guardou o inventário da mãe dele, com os registros das despesas na Europa. Isto facilitou, por exemplo, o mapeamento dos lugares. Foi uma etapa bacana da pesquisa chegar a um castelo em ue ele dizia ter morado na França. Isto ajudou a compreender a figura.”
DIVÓRCIO
Foi nesta pesquisa que Bortoloti encontrou fatos que vão colorindo a narrativa. Em 24 de maio de 1922, a mãe do artista, Leonor Augusta, que, com o segundo casamento se tornou a baronesa Von Schilgen, entrou no Tribunal de Justiça de Munique com um pedido de divórcio do marido, o barão Von Schilgen (padrasto de Guignard, que até a união vivia na ruína), 12 anos mais jovem que ela. De acordo com os documentos oficiais, Leonor afirmou que sua última relação com o marido havia ocorrido em 18 de fevereiro daquele ano e que, desde então, ele “abordava mulheres com as quais passeava de braços dados pelas ruas que lhe apeteciam”.
“As falas no divórcio estão em documentos que parecem frios, jurídicos, mas que contam uma história muito humana”, diz Bortoloti. Ainda que tenha entrevistado pessoas que conviveram com Guignard, o forte da pesquisa foi em arquivos públicos e acervos privados.
“Cartas e recortes de jornais são muito importantes para captar a emoção do momento”, comenta o biógrafo, que descobriu um relato de Lúcia Machado de Almeida sobre Guignard – “Posso chamá-la de mamãe?”, perguntou-lhe o artista, ainda que ele fosse 14 anos mais velho do que ela – por meio da correspondência e dos diários da escritora.
“Este material não foi publicado, pertence à família dela. Isto (os arquivos particulares) foi muito importante para a pesquisa. Às vezes são pastas empoeiradas em cima da estante que parecem não ter grande importância. Muitas vezes (os herdeiros) não têm consciência de levar para uma instituição (de arquivo e memória)”, comenta Bortoloti.
O defeito no rosto, que inspirou Manuel Bandeira a cunhar a expressão “anjo mutilado” para referir-se a Guignard, o afetou diretamente. “Certamente isto influenciou na personalidade e nas relações pessoais. Fica muito claro nas relações com as mulheres, de uma figura meio ingênua.”
“Naturalmente (o defeito no rosto) chega até a arte dele de diferentes maneiras”, diz o autor. Um exemplo que Bortoloti cita são os Cristos ensanguentados de Guignard, pintados com lábio leporino.
Bortoloti se debruça sobre as várias paixões platônicas que o artista teve, desde seu único casamento, em 1923, com a alemã Anna Döring. A conhecida versão de que o pintor teria sido abandonado durante a lua de mel não tem amparo na documentação encontrada por Bortoloti, que mostra que a relação durou cerca de um ano.
A contenda que dá início ao livro retorna na parte final, envolvendo todos os personagens, até a morte de Guignard, em 25 de junho de 1962, incluindo seu enterro em Ouro Preto. É fascinante e, repetindo Frederico Morais, deveras comovente.
“Guignard: Anjo mutilado”
.Marcelo Bortoloti
.Companhia das Letras (488 págs.)
.R$ 109,90 (livro) e R$ 44,90 (e-book)