Jornal Estado de Minas

MÚSICA

Com 'Roqueiro reaça', Detonautas expõe a crise da terceira idade do rock


Os versos são diretos: “Você parou no tempo e se tornou um boçal/ A sua atitude de roqueiro do mal é uma farsa/ Não tem mais graça/ Espalha preconceito e desinformação/ Dá voz ao autoritarismo e negação/ Mas que desgraça/ Roqueiro reaça”. Porém, o autor Tico Santa Cruz, com sua crítica ao conservadorismo no meio do rock, diz ter resumido um contexto mais amplo na letra do novo single da banda Detonautas Roque Clube.





O lançamento de “Roqueiro reaça” nas plataformas digitais se junta às já divulgadas “Carta ao futuro”, “Micheque”, “Mala cheia” e “Kit gay”, conjunto de canções que em breve dará forma ao novo álbum da banda. A ideia, segundo Tico, é oferecer “uma crônica sobre o que acontece atualmente no Brasil”.

Revolta

No começo da pandemia, no ano passado, o grupo havia lançado “Fica bem”, com mensagem positiva e acolhedora. Diante do agravamento da COVID-19 no Brasil e das contradições envolvendo o governo federal, a banda subiu o tom das letras. “A motivação deu lugar à revolta pelas atitudes tomadas pelo governo e outros episódios”, afirma Tico.

Depois de lançamentos questionando as fake news e outros casos polêmicos envolvendo o governo Bolsonaro, Detonautas direciona sua crítica a artistas e entusiastas do rock que contradizem a ideia transgressora e progressista historicamente associada a esse estilo musical.





“Isso não é uma questão de agora. Já víamos posicionamentos bastante contraditórios há algum tempo, desde quando tentamos dialogar sobre a democracia diante dos ataques que ela sofre sistematicamente. Agora são ataques muito mais fortes, vindos de um campo do autoritarismo que sempre flertou com ditadura, negacionismo e fundamentalismo”, comenta Tico Santa Cruz.

A letra de “Roqueiro reaça” não perdoa: “Agora é o retrato de quem te condenava/ Repete as mesmas frases dessa gente babaca”. Publicamente, Tico teve atritos em redes sociais com artistas do rock por conta de seu posicionamento político. Entre eles, o guitarrista Digão, da banda Raimundos.

“Digão fez uma postagem me ofendendo. E não foi a primeira vez, ele tinha feito outros movimentos nesse sentido. Sempre me posicionei politicamente, e como ele não entende de política, faz posicionamentos aleatórios. Aproveitei a situação muito inflamada dentro de mim, não no sentido de atacar, mas de incitar uma crítica. Não diz respeito só a ele. O Roger (Moreira, da banda Ultraje a Rigor) sistematicamente me ataca, o Lobão já me atacou. Foi um estalo de inspiração”, detalha Tico.





Aos 43 anos, o cantor e compositor se define como uma pessoa que gosta de ler e de estudar. “Fiz ciências sociais na UFRJ e, embora não tenha terminado o curso, sempre acompanhei professores, intelectuais, pessoas que pensam o país, a arte e a cultura.”

Para Tico, ideias preconceituosas e conservadoras que proliferam entre os roqueiros se explicam pela falta de entendimento deles sobre sua origem social. “Bateria, teclado e guitarra não são acessíveis para a classe pobre. É raro uma banda sair da periferia. Tem, mas é raro. O rock está atrelado à classe média, que por sua vez não tem consciência sobre o lugar que ocupa na perspectiva social. Por isso surge o discurso conservador, autoritário, preconceituoso”, analisa.

Tico acredita que alguns roqueiros se inserem nesses grupos. “Eles vão reproduzir o discurso que agrada a quem eles estão falando. Se você pegar o público do rock, e o rock deu uma envelhecida, são pessoas com o estereótipo do motociclista, surfista, skatista, do roqueiro de modo geral, que em outra época era chamado de vagabundo, marginal, drogado. Porém, hoje, reproduzem os mesmos padrões usados contra eles. Isso é não saber o seu lugar na história. Para serem aceitos, repetem os paradigmas e se tornam pessoas preconceituosas”, avalia.





Formado em 1997, o Detonautas atingiu seu ápice no pop rock nos anos 2000 com alguns hits românticos, como “Quando o sol se for”, “Olhos certos” e “Outro lugar”. Ainda assim, temas sociais sempre fizeram parte do repertório. Em 2004, a banda lançou “O dia que não terminou”, sobre a violência no trânsito ocasionada pelo consumo de álcool, e, posteriormente, “Ilumina o mundo”, com temática ligada à prevenção ao suicídio.

Tico Santa Cruz afirma que o novo single remete à falta de leitura crítica sobre política no Brasil. “O roqueiro reaça é um cara insatisfeito com o país, mas que adota o discurso conservador, autoritário, porque acha que quem estava no poder anteriormente não o representa. É alguém que não tem a capacidade de falar ‘este governo de esquerda não me representa’, mas de achar que nenhum governo de esquerda o representa. Aí ele vai para o extremo e diz que é de direita”, define.

O cantor reforça que o posicionamento crítico do grupo não é a defesa de “um lado”, mas do debate democrático. Diz que todos os álbuns do Detonautas trazem críticas a vários governos e a banda não se atrela a partidos.





Impeachment 

Nos últimos anos, o compositor do Detonautas sofreu ataques e ameaças nas redes sociais, sobretudo na época do impeachment aa presidente Dilma Rousseff (PT), em 2016.

“Fui um dos primeiros artistas a se posicionar contra o ataque à democracia. Não acho que a Dilma tinha trabalho positivo no campo econômico, mas quando se mexe com a estrutura democrática por motivo fútil, abre-se a caixa de pandora. Meu medo era esse. Naquela época, já existiam milícias digitais. Foram muitos ataques à minha família, sofri ameaças de morte. Já alertava para esse cenário, mas como o Tico Santa Cruz não é ícone a ponto de gerar intervenção positiva nesse sentido, as coisas foram tomando proporção e atingiram agora outros artistas”, relata.

O compositor espera que colegas colaborem com o que chama de “influências positivas” no debate público. “Não estou aqui para ditar regra, mas oferecer reflexão a respeito do tempo presente. Artistas têm esse poder. É importante que estudem o assunto e criem. Seja através de filme, samba, rap, pagode ou rock, de qualquer coisa que possa trazer luz ao debate”, conclui o líder do Detonautas.

Negros são raridade nas bandas de rock do Brasil. Derrick Green, do Sepultura, é exceção (foto: Mauro Pimentel/AFP )
  

O desafio da reinvenção

A crítica feita em “Roqueiro reaça” ganha entendimento mais amplo por parte de quem se dedica a pesquisar o tema. Jorge Cardoso Filho, professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, lembra que o conservadorismo já se encontrou com o rock em momentos anteriores.





“Se olharmos pesquisas bibliográficas sobre rock, veremos que autores e autoras já chamavam a atenção para disputas anteriores dentro do gênero”, afirma o doutor em comunicação social pela Universidade Federal de Minas Gerais e coautor de “Onde o rock errou? Território e audiovisualidades diaspóricas” em parceria com Juliana Gutmann. Esse texto faz parte do livro “O rock errou?”, organizado pelos pesquisadores Jeder Janotti, Thiago Alberto e Jonas Pilz, que será lançado em breve.

“Em variados momentos de reinvenção do gênero, tivemos ou uma dimensão mais conservadora do rock, ou uma dimensão mais transgressora. O punk, o rock progressivo e o riot girl foram transgressores, mas tivemos um viés do heavy metal hegemonicamente branco e misógino. O rock é por excelência transgressor, mas não podemos esquecer que sempre houve tentativas de sua apropriação por uma lógica mais conservadora. Como todo produto cultural, o rock também está em disputa”, avalia o pesquisador

Juventude branca 

Cardoso Filho afirma que o rock foi muito mais conservador do que contracultural nos últimos 20 anos. Ele justifica isso pelo fato de o gênero ter se tornado “a experiência da juventude branca europeia sob a qual a música se configura desde os anos 1990 e, por isso, perdeu sua potência de falar para públicos mais amplos”.

Na opinião do pesquisador, “uma expressão artística que fala para um público muito específico sobre os dilemas desse público muito específico tende a se tornar ultrafechada, pouco porosa, e repetir anseios de um grupo específico.” A consequência, observa, “é a profusão de roqueiros conservadores, de extrema direita ou que empregam expressões preconceituosas, racistas, misóginas e homofóbicas”.





O professor observa que vários hits vão de encontro aos tempos atuais. “Letras traziam desprezo pelo corpo feminino ou pela figura da mulher, por exemplo, como em algumas músicas das bandas Velhas Virgens e Raimundos nos anos 1990. Por isso, quando surgem movimentos reivindicando esses espaços, eles acabam saindo do rock. O rock virou espaço de homem branco heterossexual falando sobre essas experiências”, afirma Cardoso Filho, chamando a atenção para o desinteresse das gerações mais jovens pelo estilo.

“O rock, ao longo do tempo, perdeu a capacidade de dialogar com as necessidades das juventudes, que são muitas. A partir do momento em que as bandas ficam muito presas a gramáticas e formatos do rock global, sem diálogo com a experiência cotidiana da juventude local, gera-se um desinteresse”, acredita.

Para o professor, o gênero se tornou pouco capaz de dialogar com questões que mobilizam o jovem contemporâneo, como o racismo e o feminismo. “Quais bandas de rock trazem corpos negros? Por que o Sepultura, com Derrick Green (cantor afro-americano), é tão hostilizado pelo público? Por que bandas com mulheres sempre são alvos de piadas sexistas sobre as integrantes? Isso tudo afetou geracionalmente”.





Contudo, o pesquisador vê caminhos para mais uma reinvenção do rock no Brasil. “Há bandas espalhadas pelo país que trabalham com temáticas ligadas ao meio ambiente, à causa indígena, às matrizes da escravidão no Brasil. Aposto nisso.” Para ele, experiências do sul global, das juventudes latinas e africanas podem inserir novos elementos no rock.

“É um gênero musical que consegue, ao longo de sua trajetória, se reinventar. Esse tipo de experiência vai oferecer ao rock a possibilidade de tocar os millennials. Do contrário, vai virar gênero de tiozão machão que faz piada do pavê”, adverte Cardoso Filho. 

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