Politicamente inquieta desde a sua fundação, com o filme charge “O Kaiser” (1917), a animação brasileira destacou-se mundo afora com ataques ao imperialismo (“Meow”), à violência contra a mulher (“Carne”) e à homofobia (“Vênus - Filó, a fadinha lésbica”), mas nunca havia falado da ditadura militar de maneira tão frontal, contundente e comovente como o faz em “Meu tio José”.
Egressa da Bahia, a reconstituição das lutas de José Sebastião de Moura – membro do grupo de esquerda Dissidência da Guanabara, cujo nome é sempre citado entre os responsáveis pelo sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick, em 1969 – vai concorrer na seção Contrechamp do
Festival de Annecy
, na França.
O Brasil está representado nessa mesma mostra ainda pela produção paulista “Bob Cuspe – Nós não gostamos de gente'', de Cesar Cabral. O teor combativo do filme de Ducca atraiu o astro Wagner Moura para emprestar a voz a José, morto no início dos anos 1980, em um crime com evidências fortes de motivação política, até hoje não solucionado.
SILÊNCIO
"O meu tio José era uma pessoa muito calada", lembra Ducca, pós-graduado em computação gráfica pela Unifacs da Bahia e mestre em políticas sociais pela Universidade Católica do Salvador. "Pelo que diziam os adultos da casa, na época, ele ficou assim, calado, após tudo o que sofreu, sobretudo no tempo em que viveu de forma clandestina e longe da família, o que deve ter tido um efeito avassalador na sua confiança nos outros”, diz.
“No entanto, ao chegar em nossa casa, aos poucos ele foi se aproximando de nós – de mim e do meu irmão Pedro – e criamos uma relação muito bacana. Meu tio era como um herói para mim, mas não ainda porque ele havia lutado contra os ditadores. Eu primeiro o admirei como mergulhador e pescador. E, é lógico, por causa do seu talento no desenho e na pintura. José era um artista, como seu pai, Homero, meu avô... e como eu também."
Animado em 2D, contando ainda com as vozes de Lorena Comparato, Tonico Pereira, Jackson Costa, Evelin Butchegger e Bertrand Duarte, “Meu tio José” é uma súmula das saudades de Ducca. No filme, o menino que ele foi se chama Adonias e ganha a voz de Cauã Levi.
O conflito principal se dá a partir de uma redação que Adonias tem de escrever na escola, no mesmo dia em que seu tio sofre o atentado, em 1983, sendo depois levado ao hospital em estado grave. Daí em diante, Adonias tem de lidar com a tristeza de sua família, com as desavenças na escola e com a angústia de ter de cumprir a tarefa pedida pela professora.
CONVÍVIO
"Tivemos dois belíssimos anos de alegre convívio entre todos. O José me ensinou a nadar no mar. Com ele, meu irmão Pedro começou a mostrar seus talentos no futebol e também aprendemos a fazer pipas”, diz Ducca.
Ele conta ainda que, “em paralelo, havia um clima de esperança. Meus pais estavam felizes com os sinais de reabertura do país para a democracia, e minha avó estava simplesmente encantada com o retorno de seu amado filho – que, após o sequestro de Elbrick, ficou quase uma década em exílio. Quando ele morreu, tudo o que era felicidade se transformou em sofrimento, e assim aprendi o que é uma ditadura militar".
Libelos contra o totalitarismo e reflexões biográficas sobre opressões de governo vão rechear Annecy de cabo a rabo neste 2021, incluindo o dinamarquês “Fuga (Flee)”, de Jonas Poher Rasmussen, que abriu o É Tudo Verdade, em abril passado, narrando a diáspora de um homossexual afegão.
Um dos títulos mais esperados do evento francês é “My sunny Maad”, da tcheca Michaela Pavlátová (que arrebatou fãs no Brasil via Anima Mundi, com curtas como “Reci, reci, reci” e “Tram”), sobre a filosofia dos talibãs e suas sequelas em práticas governamentais.
Também é esperado um explosivo teor de crítica do animador germano-espanhol Santiago Lopez Jover em sua comédia “Snotty boy”, sobre liberdade de expressão numa Europa conservadora.
LIRISMO
Mas a abordagem de Ducca – pontuada por um lirismo singular e uma direção de arte depurada – traz uma carga trágica de brasilidade que a ficção raras vezes dedicou ao que se passou no país de 1964 a 1985.
"Temos uma produção constante sobre essa temática, com filmes como ‘Pra frente, Brasil’, ‘Manhã cinzenta’ e ‘O ano em que meus pais saíram de férias’ – que é até uma referência para a nossa animação – e séries como ‘Anos rebeldes’ e ‘Magnífica 70’”, cita o diretor.
“Wagner Moura, que está em nosso filme no papel do José Sebastião, estreou como diretor com ‘Marighella’. Mas, apesar de tudo, parece que ainda é pouco, pois parte das pessoas – ainda que pequena em relação ao número total de brasileiros – aparenta não saber muito sobre a enorme crueldade que fez parte do regime que afligiu o Brasil durante tantos anos. Se realmente soubessem, não estariam se manifestando a favor de AI-5 e de outras ideias esdrúxulas", diz Ducca.
Estreante em longas, ele já dirigiu séries de animação para canais como Disney Jr. e ZooMoo. Rodou seu longa com R$ 1,5 milhão. "Como foi um filme de baixíssimo orçamento, trabalhamos por três anos em sua produção e escolhemos uma técnica que pudesse nos dar a economia."
Esse valor é o equivalente ao que se gasta em Hollywood para animar cerca de 10 segundos de um longa como “Soul”, da Pixar. Mas quem vê as soluções gráficas de Ducca na tela não se prende em valores de produção (embora estejam lá, bem empregados) e, sim, em invenção e poesia.
“‘Meu tio José’ é um dos casos de captação de recursos locais, já que foi aprovado em chamada pública de arranjos regionais, num edital realizado em parceria entre a Secretaria de Cultura da Bahia e o Fundo Setorial do Audiovisual. O curioso é que foi um edital direcionado a longas de ficção, onde concorreram filmes em live-action e o ‘Meu tio José’ era a única animação”, conta Maria Luiza Barros, produtora executiva do filme, que será lançado aqui até o fim do ano pela distribuidora Tucumán.
"Destaco a visão da comissão de seleção, que, entre vários filmes em live-action, teve a ousadia e visão de selecionar uma animação, o que a seleção do filme por Annecy demonstra ter sido uma decisão relevante. Simbolicamente, ela traz um retorno de imagem importante para a produção baiana."
Contando com versões de sucessos de Chico Buarque em sua trilha sonora (como “Roda viva”, “Construção”, “Deus lhe pague”, “O que será” e “Apesar de você”), “Meu tio José” mostrará uma Bahia urbana, do início dos anos 1980, a Annecy.
"A animação, de forma geral, cresceu muito no Brasil ao longo dos últimos 15 anos, na esteira da bem-sucedida política construída no período em que tínhamos um Ministério da Cultura comandado por Gilberto Gil e, em seguida, Juca Ferreira", diz Ducca.
"A Bahia também apresenta resultados muito positivos em número de estúdios, de filmes e de séries realizados na linguagem da animação, o que é resultado de uma ação muito importante do governo baiano. A animação na Bahia existe desde a década de 1970, com pioneiros como Jorge Nascimento e Chico Liberato. Chico produziu o quarto longa-metragem em animação realizado no Brasil, ‘Boi Aruá’. Existem também outros exemplos de sucesso, como o filme em stop motion ‘Òrun Àiyé’, que rodou o mundo em festivais, e uma produção intensa de séries oriundas de diversos estúdios baianos e de artistas como Caó Cruz Alves, que tem uma estética bastante despojada e muito interessante."
No Festival de Annecy, “Meu tio José” será exibido nesta segunda (14/06), terça (15/06) e quarta (16/06).
(Agência Estado)