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Estado de Minas LITERATURA

Cronista Lino de Albergaria dialoga com o leitor em ''A vida como ela era'

Escritor mineiro usou as redes sociais para dividir suas histórias sobre a pandemia com o público, que foi convidado a criar a capa do novo livro


16/06/2021 04:00 - atualizado 16/06/2021 07:34

Acácia Rios*
Especial para o Estado de Minas

(foto: Kleber Sales/CB/D.A Press )
(foto: Kleber Sales/CB/D.A Press )


A senhorinha que é obrigada a aprender a usar um aplicativo do telefone para pedir comida e fotografa cenas da janela do seu prédio; o maestro que se apaixona por um rapaz mais jovem e contrai o vírus; a mulher que, desempregada, passa a trabalhar como taróloga para sobreviver, disfarçando como pode as suas falhas divinatórias.

Esses são alguns dos personagens de “A vida como ela era – Retratos da pandemia”, do escritor mineiro Lino de Albergaria, reunião de 34 crônicas que retratam a vida durante o isolamento social a partir de um espaço central: um condomínio de classe média por onde transita a maioria dos personagens, embora o narrador também nos dê a perspectiva de outro condomínio, de moradores mais pobres, alguns direta ou indiretamente ligados ao anterior. Nessas histórias, enquanto uns prescindem dos cuidados preventivos, outros descobrem novas ocupações e sonham com a vacina contra o vírus da COVID-19.

TECNOLOGIA 
Os três personagens citados acima – dos mais de 30 que aparecem no livro – já dão uma dimensão das novas práticas cotidianas da nossa sociedade e dos velhos problemas que se intensificaram na pandemia. Senão vejamos: os usos compulsórios da tecnologia pelos idosos, desemprego e novos arranjos profissionais, velórios sem despedidas, mortes de pessoas dos grupos de risco, amor em tempos de pandemia, negacionismo, violência doméstica, festas clandestinas e o apelo ao sobrenatural.

De fora, nós, leitores, vamos ligando os fios da grande teia de relações humanas, cujos vínculos se dão por laços sanguíneos e necessidades comerciais e afetivas, como na crônica “A conjunção”, por exemplo: “Tinha de pedir pelo celular, que mal usava. Pelo zap-zap, como ele falava. Mas não devia ser o nome certo. Ela tinha ouvido algo como what's up. Em inglês. Devia escrever assim, achou. O rapaz, que antes lhe parecia meio insolente, teve tempo e paciência para lhe dar lições pelo interfone. Ela mandou o aparelho pelo elevador para ele instalar o aplicativo.”

Em outra crônica, “A voz do destino”, o sobrenatural aparece como um recurso em tempos de crise, em que muitos buscam respostas para os seus problemas, apelando muitas vezes para soluções duvidosas: “Quando a taróloga lhe abriu a porta, sentiu a onda de confiança que a mulher passava. Uma casa cheirosa, perfumada. Adorava o aroma de jasmim. (...) Esperava que o tarô lhe dissesse que aquilo não ia dar certo e que o destino soprasse, usando a linguagem das cartas, uma solução melhor, à altura de sua família”.

O recurso narrativo é uma surpresa à parte. Um narrador em primeira pessoa introduz as histórias e, sutilmente, reaparece na última crônica. Trata-se de um narrador consciente, onisciente e testemunha da pandemia: “Como tantas pessoas, criei o hábito, neste retiro forçado e interminável, de observar da janela o que o mundo me permite ver.”

capa 
Inicialmente publicadas na plataforma do Facebook, somente depois é que as crônicas foram reunidas em livro. Essa rede social possibilitou um diálogo direto entre o autor e os leitores, proporcionando a Lino de Albergaria uma imediata recepção de seus textos. Prova dessa interação foi a seleção da capa, feita pelos leitores virtuais, que puderam escolher entre as cinco opções propostas.

Numa linguagem enxuta e concisa que mostra a versatilidade do escritor, “A vida como ela era” é um mapa das novas práticas e sentimentos do nosso dia a dia. Esse amplo espectro temático, sem dúvida, é fruto do experiente olhar de Lino de Albergaria, que este ano completa
32 anos de literatura, com mais de 80 livros publicados.

Há certa liberdade de leitura das crônicas, podendo ser feita de forma separada (como ocorreu no Facebook inicialmente) ou em conjunto (no livro). Essa última opção, entretanto, nos fornece um sutil encadeamento das ações, que mostra a dinâmica da própria vida, de como se dão as relações humanas, sociais e culturais a partir de um microcosmos – o condomínio. O resultado é uma panorâmica de pequenos retratos que, juntos, se comunicam no espaço e no tempo, e nela nos vemos refletidos.

Carlos Drummond de Andrade, ao dizer que “de notícias e não notícias se faz a crônica”, conferiu ao gênero uma maleabilidade que lhe permite reconstruir elementos retirados do jornal e da vida, dando-lhe uma dimensão sensível. A crônica é, assim, uma colcha de retalhos do cotidiano com seus dramas e sua poesia. Lino de Albergaria dialoga com essa linha e, não à toa, homenageia o mestre Nelson Rodrigues.

Para além de “A vida como ela é” (coluna que o escritor pernambucano manteve no jornal “Última Hora” nos anos 1950), há também uma coincidência temática que vale a pena mencionar aqui. Trata-se da epidemia da gripe espanhola no Rio de Janeiro, narrada em seu livro de memórias “A menina sem estrela”, da qual o autor pernambucano foi testemunha:

“Ora, a gripe foi, justamente, a morte sem velório. Morria-se em massa. E foi de repente. De um dia para o outro, todo mundo começou a morrer. Os primeiros ainda foram chorados, velados e floridos. Mas quando a cidade sentiu que era mesmo a peste, ninguém chorou mais, nem velou, nem floriu. O velório seria um luxo insuportável para os outros defuntos”.

RITOS 
Também nesta pandemia, o alto risco de contágio e as imagens de centenas de covas nos cemitérios, que já não suportavam tantos corpos, nos deram a dimensão da ausência de ritos e de despedidas aos quais culturalmente estávamos habituados, como vemos em “A mulher no velório”, em que a empregada é a única a velar a patroa: “Olhou para o caixão fechado. Nem podia ter certeza de que tinha velado a pessoa certa. O que a deixava triste é que não viu nenhuma flor. Logo na despedida de quem tinha trabalhado por anos decorando festas e casamentos”.

Bem poderíamos inverter os títulos dos livros de Nelson Rodrigues e Lino de Albergaria, uma vez que, com os olhos de hoje, a vida narrada pelo escritor pernambucano é uma vida pretérita, ao passo que a que nos descreve Lino é a presente. Inversão à parte, a literatura se impõe aqui como um remédio para minimizar as nossas perdas e danos.
* Professora e escritora, autora de “Amor alien em Paris” (com o pseudônimo de Hessie Rivers), lançado pela Amazon


“A VIDA COMO ELA ERA – RETRATOS DA PANDEMIA”
.De Lino de Albergaria
.Editora Quixote+Do
.137 páginas
.R$ 42,90



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