Jornal Estado de Minas

MÚSICA

Guinga revela seu lado letrista em todas as faixas do disco 'Zaboio'

De nome pomposo, Carlos Althier de Souza Lemos Escobar, com o pseudônimo de Guinga, tornou-se um dos nomes de maior relevância da MPB contemporânea. Com 18 discos lançados, tem músicas gravadas por Chico Buarque, Sérgio Mendes, Cauby Peixoto, Ivan Lins, Elis Regina, Beth Carvalho, Clara Nunes, Mônica Salmaso e Leila Pinheiro, além do francês Michel Legrand.





Com frequentes turnês e apresentações no exterior, Guinga aproveitou a longa quarentena determinada pela pandemia para, isolado em casa, ocupar o tempo com o que mais lhe dá prazer: compor. Nove das músicas criadas nesse período, inspiradas em sua memória afetiva, se juntaram a outras duas, feitas anteriormente, no repertório de “Zaboio”, álbum que acaba de chegar às plataformas digitais.

Chama a atenção o fato de, durante sua longa trajetória artística, Guinga lançar pela primeira vez um disco em que todas as letras e melodias têm a sua assinatura. Em algumas canções, o compositor presta homenagem a pessoas e lugares cujas lembranças ficaram armazenadas no seu imaginário.

É o caso de “Sabiá negritude”, dedicada a Mãe Tainha e sua ancestralidade, a quem conheceu na infância, durante viagem com a família à Ilha de Itamaracá (PE). “A bailarina e o vaga-lume” ele fez para a neta. Com “Tangará”, festeja o amigo Sérgio Mendes.





Ao compor “Casa de Francisca”, Guinga se lembrou do Palacete Teresa Toledo, prédio paulistano tombado pelo patrimônio histórico, onde encontrou pessoas “que fazem da música um meio de vida material e espiritual”.

“Zaboio”, a faixa-título, remete a recordações da adolescência de Guinga, época em que Jacarepaguá, bairro do Rio de Janeiro, era considerado zona rural.

Produzido por Kassin, o disco foi gravado em fevereiro no estúdio carioca Mariani. Além do álbum, serão lançados disco em vinil e um documentário sobre o processo de gravação, dirigido pelos idealizadores do projeto, Fernanda Vogas e Xabier Monreal.

Como foi a experiência de gravar pela primeira vez um disco em que você é autor de todas as melodias e letras?
Realmente, agora, aos 70 anos de idade, é que fui ter essa experiência. Quando comecei a compor, fazia as letrinhas de minhas músicas... Mas logo comecei a compor com Paulo César Pinheiro e percebi que tinha de entregar minhas melodias para quem fosse de um talento específico. Fiquei muito feliz em poder fazer essa parceria com Paulinho Pinheiro, e assim seguiu minha carreira... Com o Pinheiro, com o Aldir (Blanc), com um monte de parceiros. Até que chegou um momento da vida, eu com quase 70 anos, em que comecei a sentir vontade de verbalizar algumas coisas, as minhas músicas. E até nas músicas de alguns parceiros, como é o caso da Ana Paes, do Ian Faquini e do Jean Charnaux. Comecei a fazer umas letrinhas para eles, e eles gostaram. Aí me empolguei.





Como se sente o Guinga letrista?
Estou verbalizando algumas coisas nas minhas músicas. Mas acho que tenho esse direito porque, no fundo, as letras que faço estão falando sobre mim mesmo. E, para falar de mim, acho que tenho alguma autoridade (risos). Sou compositor de melodias, mas neste disco assumo totalmente as letras que fiz. Eu gosto, me sinto feliz. Dá um sabor à canção... As canções fluem como se derretessem na boca. Eu me sinto muito feliz por isso!

Todas as canções foram compostas no período da pandemia?
Não! Compostas durante a pandemia tem “Paulistana sabiá”, “Casa de Francisca”, “Zaboio”, “Saíra apunhalada” e, talvez, “Sábia negritude”. Mas fiz outras músicas, umas sete ou oito. Porém, nem todas estão no disco.

Optou por preencher a interminável quarentena com música?
A música sempre ajuda nos momentos de euforia, nos momentos de tristeza. A música é uma companheira. Ela não é tudo na minha vida, mas é grande parte da minha vida. Não vou dizer que é mais importante do que minha família, as pessoas que me amam e que eu amo, mas a música é um pedaço muito importante da minha vida. Não acho que a música seja mais importante do que o ser humano. O ser humano é a grande obra da natureza. Ela me preencheu muito na pandemia, mas também fui preenchido pelo amor das pessoas. E, na medida do possível e do que cabe no meu coração, tento retribuir.

Quais foram as fontes de inspiração para as novas canções?
Minha fonte de inspiração é minha vida! O que observo no cotidiano e no sentimento alheio. Nada diferente de qualquer outra pessoa que escreve. Alguns fazem isso com uma estatura gigantesca. Eu tento fazer de uma forma que o conjunto de música e letra me preencha, usando o filtro da minha crítica.





Quanto tempo durou a produção do seu disco “Zaboio”?
A Fernanda Vogas, idealizadora e produtora do projeto, me procurou em janeiro deste ano propondo a gravação de um disco com músicas de letras e melodias minhas. Ela admira muito minhas músicas. A empresa dela, a Vogas Produções, criou um selo fonográfico para gravar o meu disco e minhas músicas. Foram cinco meses, da idealização do projeto, escolha de repertório, gravação, mixagem, masterização e toda a parte de licença, à distribuição digital.

“Tangará” você dedicou a Sérgio Mendes. Por que quis homenageá-lo?
Homenageei o Sérgio porque é um grande artista, um grande vencedor, que elevou o nome do Brasil, divulgou o nome do Brasil pelo mundo. Sérgio é um sucesso em todas as acepções da palavra. Mas não só por isso. É um grande amigo, um dos poucos que tenho. Tenho um amor muito profundo por ele e por toda a família dele. Então, fazer uma música para o Sérgio é quase uma obrigação.

Mônica Salmaso gravou um CD cujo repertório é formado por músicas que você compôs com Paulo César Pinheiro. Qual é a importância de incluir a cantora paulistana em “Zaboio”?
A Mônica é uma defensora da minha música. Até brinco que ela é o goleiro do meu time. Não passa nada, ela defende tudo! Pela minha obra, ela dá a vida. Além disso, ela dá a genialidade que recebeu de algo superior, que apontou o dedo pra ela e disse: “A você eu vou dar toda a arte possível que uma cantora pode ter”. A Mônica é isso! Por sorte minha, ela cruzou meu caminho e ama minhas músicas. Da mesma forma que a amo cantando minhas músicas. E amo essa minha amiga como se fosse uma filha minha.





O que vem a ser zaboio?
Zaboio é, na realidade, aboio. Fui criado em zona rural, fazendo ração para cavalo, cortando capim para cavalo, ajudando a raspar o pelo do cavalo, ajudando a levar cavalo para o pasto. Mesmo sem gostar – eu não gostava de nada disso. Mas era a minha cota, que tinha de fazer na casa onde fui criado, casa da minha avó. Os tios pediam para ajudar, e era quase minha obrigação. Afinal de contas, minha avó me dava casa e comida, meus tios ajudavam a me criar. Eu fazia isso a contragosto, nunca tive ligação com cavalhada. Mas depois de velho, agora fui entender, senti saudade de tudo aquilo que vivi. Todo aquele ambiente que parecia um verdadeiro faroeste, aquela cavalhada toda. Cresci assim; isso acompanhou minha vida até os 17 anos. A Fernanda, idealizadora e produtora do disco, perguntou: 'O que é essa música?' Respondi: ‘Ah, isso são meus aboios’. Mas o som saiu como ‘meus zaboios’. É calcado no som, mas, no fundo, é meu aboio!

Além do álbum, você vai lançar um vinil e um documentário sobre a produção de “Zaboio” neste momento em que a cultura no Brasil passa pelo processo de desvalorização por parte de órgãos governamentais. Você encarou as dificuldades assim mesmo?
Na vida, estou habituado a enfrentar dificuldades. Forjei minha personalidade nos revezes, então até hoje não tive medo, não! Até hoje consegui superar. Lógico que não superei sozinho, porque sozinho não se faz nada na vida. Sempre com algumas ajudas. Alguém dividindo os fardos, os bons momentos. E a vida só tem razão assim, quando você tem alguém para dividir os bons e os maus momentos.

(foto: Xabier Monreal/divulgação)


“ZABOIO”
.Disco de Guinga
.11 faixas
.Tratore
.Disponível nas plataformas digitais






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