Logo nas primeiras páginas, surgem personagens paramentados com equipamentos futuristas que garantem a sobrevivência no cenário devastado pela lama tóxica. A ambientação poderia ser um lugar fictício ou no hemisfério norte, como tantas outras histórias em quadrinhos. Porém, a trama se passa no interior de Minas, onde, aliás, tal ideia nem é tão fantasiosa, se considerarmos os crimes ambientais ocorridos recentemente em Mariana e Brumadinho.
Leia Mais
Feira de Quadrinhos da Casa promove 'encontro' entre animadores e fãsZico vira quadrinhos no dia que completa 68 anosLivro sobre ciclo da mineração em MG, 'A mãe do ouro' mescla fato e ficçãoExposição mostra a influência de HQs sobre games, animações, jogos e filmesFeira de quadrinhos de BH faz homenagem ao premiado Jefferson CostaSérie 'Vou viver de HQ' mostra a trajetória de Fábio Moon e Gabriel Bá''One Piece'' chega ao milésimo episódio em festa globalizadaExposição virtual oferece 'viagem' ao sertão de Guimarães RosaMaria Bethânia divulga single do álbum de inéditasProjeto de curta-metragem imagina o Brasil pós-guerra civil“ALIEN”
Cofundador e diretor de criação da Casa dos Quadrinhos – Escola Técnica de Artes Visuais e Digitais de Belo Horizonte, Seixas foi o único roteirista brasileiro de quadrinhos a escrever para a franquia “Alien”, na minissérie da Dark Horse Comics lançada em 2020.
Sua trajetória inclui trabalhos para alguns dos principais estúdios do mundo ao longo das últimas duas décadas. Depois de anos lidando com narrativas estrangeiras, a vontade de produzir algo ligado à própria terra deu origem a “Contos da Calango” – derivação da revista em quadrinhos “Calango”, criada em parceria com Eduardo Pansica
“Eu e o Eduardo Pansica, cocriador do novo projeto, estávamos trabalhando há mais de 10 anos no mercado de super-heróis. Pansica era veterano da DC Comics, estávamos doidos para fazer uma coisa mais brasileira, mais pessoal. Queríamos justamente o oposto da ideia do super-herói fortão vivendo em Nova York”, revela Seixas.
Retratar cenários nacionais batidos, ligados ao Rio de Janeiro, ao litoral ou à Amazônia, também não era o objetivo da dupla. Dessa forma, o sertão mineiro entrou no radar.
“Começamos a pesquisar algumas coisas sobre o Norte de Minas e o Sudoeste da Bahia. Foi assim que chegamos à imagem da menina sozinha, acompanhada apenas por seu calanguinho de estimação, sempre fugindo de alguma coisa. A partir dessa premissa, exploramos várias possibilidades”, explica o roteirista. À medida que a proposta se aproximava de uma temática pós-apocalíptica, a ideia de retratar o sertão foi reforçada.
“Chegamos a uma conclusão até um pouco triste: se um evento apocalíptico acontecer, a vida no sertão mudaria muito menos que nas grandes cidades, porque são lugares onde já se vive sem muita estrutura”, argumenta Cristiano Seixas.
O resultado foi “Calango”, que começou como projeto autoral em 2016, até se tornar uma revista em quadrinhos completa, viabilizada por financiamento coletivo. O universo temático se expandiu, processo que, nos últimos anos, incluiu até adaptação para game de celular.
Viabilizado pela Lei Aldir Blanc, “Contos da Calango” nasceu como derivação da história principal. O objetivo é apresentar novas aventuras e novos personagens naquele cenário sertanejo ainda mais devastado pela ação destruidora da monocultura e da caça, mas sem especificar precisamente onde tudo se passa.
Cristiano Seixas explica que Eduardo Pansica, por estar envolvido em outros projetos, participou apenas da criação da capa do livro. Por isso, coube a ele criar roteiros para os quatro primeiros contos.
MINERADORAS
O primeiro, “Momokan: Onde descansa o coração”, é inspirado nas tragédias ambientais provocadas pelas mineradoras em Minas Gerais. Conta a história da filha que leva o pai para encerrar sua vida na igrejinha do povoado onde nasceu, em meio ao desafio de sobreviver onde tudo foi devastado pela lama tóxica. As ilustrações são de Alexandre Tso.
Em “Equilíbrio”, ilustrado por Acir Piragibe, os quadrinhos estão inseridos na ancestralidade afro repaginada. Os protagonistas sobrevivem na comunidade futurista identificada como neoquilombo. “Relíquias”, com traços de Igor Cicarini, tem heroínas lutando num ambiente tomado pelo lixo.
Já “Fogo amigo”, com arte de Guilherme Balbi, traz referências da obra de Guimarães Rosa ao contar a história de uma sucateada divisão do Exército agrupada na caatinga.
O quinto conto é “Vermelho urucum”, escrito por Monica Toledo e ilustrado por Jane Carmen. Ambientada em local não identificado do sertão mineiro, a trama é protagonizada por uma garota que enfrenta dilemas sobre autoaceitação, enquanto estreita sua relação com a natureza ao redor.
De acordo com Cristiano Seixas, um dos objetivos do projeto “Calango” é “reforçar diferenças, diversidades e a variedades de vozes” em histórias autorais e independentes. Por isso, ele fez questão de que pelo menos um dos contos fosse de autoria feminina.
Seixas também destaca a oportunidade para ilustradores convidados experimentarem práticas diferentes daquelas a que estão mais acostumados em trabalhos comerciais.
“É muito válido esse tipo de experiência”, confirma o belo-horizontino Alexandre Tso, experiente ilustrador para grandes marcas em trabalhos mais realistas, nem sempre nos quadrinhos. “Em nossos trabalhos comerciais, não temos margem para explorar tanto, pois existem limitações dentro do que o cliente pede. Como 'Momokan' é um projeto mais autoral, dá para sair da caixinha”, afirma.
Ao comentar o desafio de colocar em traços histórias que remetem a paisagens sertanejas e à destruição delas por tragédias ambientais, Tso diz que se trata de temas “superválidos e atualizados”.
“Vemos tanta coisa nessa vibe, nessa mesma linha temática, que o pessoal usa lá fora, com revistas, filmes e séries sobre apocalipses zumbi e outras tragédias naturais. Por que não explorar isso dentro de uma coisa mais nossa?”, questiona.
VARIEDADE
De acordo com Tso, ainda que o tema seja “doído”, é importante alertar sobre as consequências da destruição do meio ambiente. Cristiano Seixas diz que “Contos da Calango” vem reforçar a variedade de linguagens de HQs lançados em Minas Gerais ultimamente.
“Criamos um ambiente que favorece o desenvolvimento de quadrinhos independentes e de autores que têm trabalho próprio. Além do humor e da aventura, que já eram muito conhecidos, hoje temos histórias em quadrinhos de drama, documentários e outros gêneros. Essa construção vem de muitos anos, desde a criação do Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ) e da Casa dos Quadrinhos”, conclui.
“CONTOS DA CALANGO”
.Roteiro: Cristiano Seixas e Monica Toledo
.Ilustração: Jane Carmen, Acir Piragibe, Alexandre Tso, Igor Cicarini e Guilherme Balbi
.Independente
.72 páginas
.R$ 45
.Lançamento nesta quarta-feira (30/06), às 21h, no “Papo CDQ”, transmitido no YouTube (www.youtube.com/c/ Casados QuadrinhosBeloHorizonte). Informações: www.casadosquadrinhos.com.br/calango/