Em 2003, em sua primeira edição, a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) trouxe notáveis nomes da ficção, como Don DeLillo, Julian Barnes e Hanif Kureishi, mas foi um historiador que atraiu fila de seguidores em suas caminhadas pelo calçamento incerto da cidade fluminense. Então com 86 anos, o britânico Eric Hobsbawm desfrutava de rara popularidade graças aos seus comentários precisos e pessimistas sobre o século passado, a ponto de ser chamado de “intelectual superstar” pela historiadora Lilia Schwarcz.
“Seus livros eram extremamente populares no Brasil, e isso se deveu em parte ao apoio entusiástico dos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Lula, e também porque ele conquistou o apoio de intelectuais brasileiros antes mesmo da transição para a democracia”, observa o historiador inglês Richard Evans, autor de “Eric Hobsbawm”, alentada biografia lançada agora pelo selo Crítica, da Editora Planeta.
Foram cinco anos de pesquisa para montar o retrato íntimo e simpático de Eric John Ernest Hobsbawm (1917-2012), historiador britânico de origem judaica, intelectual nascido em Alexandria e que usou os princípios do marxismo para explicar o mundo atual.
Evans se baseou em diários, cartas e entrevistas, bem como no material contido em uma caixa robusta de arquivos acumulada pelo MI5, o serviço secreto da Grã-Bretanha, que, por muitos anos, manteve sob observação o homem que via como subversivo.
O sucesso do historiador deve-se principalmente a um estilo literário que, por ser envolvente, atingia o público mais amplo possível. Hobsbawm conseguia combinar a síntese abrangente com detalhes reveladores, além de condensar a essência de uma era em parágrafos vigorosos e certeiros.
Entre suas obras mais destacadas, que influenciaram gerações de historiadores estão “Era dos extremos: O breve século 20 – 1914-1991” e “Globalização, democracia e terrorismo”. Nesta entrevista por e-mail, Richard Evans comenta a trajetória do intelectual britânico.
Até que ponto a vida de Hobsbawm moldou a história que ele produziu?
Moldou sua escrita histórica de várias maneiras. Ele era um cosmopolita, nasceu em Alexandria, cresceu em Viena e Berlim e se estabeleceu no Reino Unido (nasceu e continuou sendo um cidadão britânico). Hobsbawm passou muito tempo na França na década de 1930 e novamente na de 1950. Seus relatórios escolares indicam que sua língua nativa era inglês/alemão – sua mãe, uma tradutora, insistia que a família falasse em inglês em casa. Ele tinha um francês fluente e, mais tarde, aprendeu italiano e espanhol. Também adquiriu uma ampla abordagem internacional da história e, mesmo quando escreveu sobre a Inglaterra, era sempre com olhar comparativo. Mais tarde, estendeu sua cobertura histórica para a América Latina. Nas décadas de 1930 e 1940, Hobsbawm era um comunista bastante ortodoxo, casado com uma participante do Partido Comunista da Grã-Bretanha e cultivando suas ideias a partir da leitura atenta de Marx, Engels e Lenin. Quando começou a escrever sobre a história, revelou uma perspectiva da “marcha do trabalho”, focalizando sobretudo a classe trabalhadora industrial. Mas quando se afastou do Partido Comunista na década de 1950, Hobsbawm começou a escrever sobre pessoas marginais e desviantes, “rebeldes primitivos”, bandidos e semelhantes. Isso coincidiu com o momento em que vivia um doloroso rompimento de seu primeiro casamento, em 1953, quando morava em parte com uma namorada marxista dissidente em Paris e passava muito tempo no Soho, bairro boêmio de Londres, em clubes de jazz e bares, incluindo pessoas marginais em sua vida pessoal, até mesmo uma namorada que era trabalhadora do sexo em meio período. Após o segundo casamento, em 1962, ele estabeleceu uma vida familiar estável. Foi então que começou a escrever amplas pesquisas gerais, começando com “A Era das revoluções”. Portanto, a maneira como viveu se encaixou de forma interessante com a maneira como ele abordou a história.
Como foi a experiência de percorrer os arquivos do M15?
Hobsbawm esteve sob vigilância do MI5 desde a guerra – por quanto tempo, não sei, já que não tive permissão para ver o mais recente dos sete arquivos volumosos que compilaram sobre ele. Era um homem totalmente inofensivo – ao contrário dos “cinco espiões de Cambridge”, que causaram muitos danos. Mas, como estes eram todos ingleses de classe média alta com origens impecáveis, o MI5 e o MI6 confiavam neles, ao contrário de Hobsbawm, que, de alguma forma, era estrangeiro e não se encaixava naquele perfil. Os arquivos mais úteis trouxeram transcrições de conversas grampeadas na sede do Partido Comunista, que revelavam muito sobre seu papel nas disputas internas que eclodiram naquele partido, em 1956. Fora isso, eles apenas mostraram que a vigilância era uma perda de tempo.
O que diria sobre o estilo de escrita de Eric Hobsbawm?
A mãe de Hobsbawm era romancista e tradutora. Por meio dela, mesmo em seus diários de adolescente, ele desenvolveu um estilo de inglês fluente e altamente legível. É tudo, menos árido e acadêmico. Ele sempre teve como objetivo atrair o leitor em geral, exceto por seus primeiros artigos na Economic History Review, que escreveu para estabelecer suas credenciais como historiador da economia.
O senhor poderia apontar as contribuições mais significativas de Hobsbawn para a história?
As contribuições de Hobsbawm foram importantes em vários campos. Seus artigos estabeleceram um debate sobre “a crise geral do século 17”, que continua até hoje, da mesma forma que os artigos sobre o padrão de vida durante a Revolução Industrial. Seu melhor e mais emocionante livro é “Bandidos”, em que seu conceito de banditismo social ainda domina o campo. Os amplos livros da série “A Era...” são pesquisas ainda hoje essenciais e amplamente utilizadas no ensino universitário. Sua forma de conceituar períodos – o longo século 19, o curto século 20 – teve enorme influência. O que o tornou um historiador notável foi sua combinação de poder teórico e legibilidade.
Por que ele decidiu ser historiador em vez de seguir a carreira política?
Hobsbawm já sabia, quando adolescente, que era um intelectual, não um lutador de rua ou ativista político. Ele considerou várias carreiras, como jornalista ou administrador do partido, por exemplo, mas sua autodefinição precoce como intelectual o levou quase inevitavelmente para a academia, e ele conseguiu um emprego como historiador fundamentalmente porque descobriu que era bom nisso.
Como podemos distinguir seu marxismo de seu comunismo?
Ele nunca foi puramente marxista; sempre foi fortemente influenciado pela escola francesa Annales, com a qual entrou em contato ainda estudante. Logo no início, podem-se ver elementos leninistas em sua escrita, mas, com o passar do tempo, se tornaram mais fracos. Em “A Era do império”, ele rejeita as teorias do imperialismo de Lenin e Rosa Luxemburgo, por exemplo. E quase nunca menciona Stalin, mesmo em seus diários dos anos 1930, embora um comunista comprometido expressasse profunda reverência pelo líder soviético, cujos escritos eram profundamente desinteressantes para um intelectual. Hobsbawm nunca abandonou seu determinismo econômico, como se vê na estrutura dos livros da série “A Era...”, que sempre começam com economia.
Por que Hobsbawm, por muito tempo, evitou escrever sobre o século 20?
Ele evitou escrever sobre o século 20 enquanto ainda era membro do Partido Comunista, porque isso significaria seguir a “linha do partido” e Hobsbawm não estava disposto a abandonar sua independência intelectual.
É interessante quando o senhor sugere que, órfão aos 14 anos, ele recebeu do Partido Comunista o sentimento de pertencimento que sua família não podia mais prover.
Hobsbawm encontrou uma família substituta primeiro entre os escoteiros, mas, quando foi para Berlim e morou lá no início dos anos 1930, o forte e ativo Partido Comunista local proporcionou um tipo de família mais satisfatória intelectual e politicamente. Na década de 1950, ele também encontrou uma comunidade unida no mundo do jazz. Hobsbawm deu muitas explicações sobre os motivos que o levaram a permanecer sempre leal ao comunismo, mas essencialmente isso foi embutido em seu caráter desde a adolescência. Ele era pobre no início dos anos 1930 e se juntou aos comunistas porque eles fizeram da pobreza algo de que se orgulhar, como se refere em seu diário.
“Três milionários estão sentados em um bar. Depois de beber um pouco de uísque, eles começam a se animar e a cantar a música mais marcante de sua juventude: a Internacional Comunista.” Foi com essa piada que Hobsbawm encerrou sua palestra na Flip, em 2003. Como o senhor analisa esse bom humor?
A diferença é que embora Hobsbawm tenha se tornado bastante rico, embora nunca tenha sido um milionário, ele nunca abandonou suas opiniões de esquerda. Ele podia conversar com qualquer pessoa e gostava de fazê-lo. Embora fosse pessimista em relação ao futuro, nunca desistiu inteiramente. Era isso que o tornava atraente para os jovens. (Estadão Conteúdo)
“ERIC HOBSBAWM: UMA VIDA NA HISTÓRIA”
. De Richard J. Evans
. Selo Crítica/Planeta
. 728 págs
. R$ 159,90