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Estado de Minas MÚSICA 

'Coisas do coração' traz Raul Seixas visto na intimidade

Num relato sem rodeios e recheado de episódios tensos e dramáticos, Kika Seixas expõe a intimidade de seu casamento com o roqueiro baiano


05/07/2021 04:00 - atualizado 05/07/2021 07:28

Raul Seixas em sessão fotográfica para o ''Estado de Minas'', em 1981
Raul Seixas em sessão fotográfica para o ''Estado de Minas'', em 1981 (foto: Kao Martins/Arquivo EM)

Um dos baús mais bem guardados de todos os baús deixados por Raul Seixas (1945-1989), as memórias de Kika Seixas, casada com o artista baiano entre 1979 e 1984 e com quem teve a filha Vivian Seixas, renderam um importante livro aos fãs e pesquisadores da música brasileira. 

Apenas Kika pode falar com propriedade e emoção, para além de documentos, entrevistas e imagens nas quais outras biografias se baseiam, dos instantes íntimos de glórias e das muitas quedas de Raul, uma das personalidades mais complexas e desafiadoras do pop brasileiro, o ser que encerrou a mais perfeita tradução do espírito rock and roll em seus limites e entregas desde que os primeiros roqueiros começaram a surgir. Ninguém foi mais longe nisso por aqui do que Raul Seixas, conforme as memórias de Kika reforçam.

Antes da leitura, é bom não cair em uma querela semântica. “Coisas do coração”, o nome do livro, é, antes de ser uma nova biografia de Raul, uma autobiografia de Kika Seixas. Claro que as duas histórias se entrelaçam e correm juntas, mas a narrativa em primeira pessoa feita por Kika, em parceria e com ajuda no texto, apuração e organização de Toninho Buda, a torna mais íntima, dramática e sem o distanciamento diplomático que as biografias precisam ter de seus biografados. 

Existem ali também os documentos e inserções de reportagens sobre Raul, mas, a partir do instante em que o músico passa sobretudo a beber mais e a sentir os sinais de uma deterioração do corpo e da mente, o livro se torna corajosamente angustiante.

COCAÍNA

A erosão da figura de Raul Seixas pela ação da cocaína e do álcool consumidos em doses incessantes não é uma novidade, mas a força que esses episódios ganham ao ser contados por quem viveu a seu lado com uma filha pequena é cortante. 

O texto não tem os subterfúgios do humor que Rita Lee, por exemplo, consegue imprimir magistralmente à sua biografia. Kika e Toninho narram tudo, mesmo os episódios da infância do roqueiro, com a tensão do que está por vir. Depois de narrar o episódio de 1982, no qual Raul se tornou suspeito de não ser Raul para cerca de 300 fãs que assistiam ao seu show em Caieiras – uma cinematográfica passagem em que, de tão bêbado, Raul, ameaçado de espancamento, acabou sendo conduzido à delegacia e preso, até provar que era ele mesmo –, Kika expõe suas impressões devastadoras, pela primeira vez.

"Essas situações complicadas, como esse episódio de Caieiras, só me deram mais certeza de que ele estava bebendo descontroladamente e sem condições de administrar situações e conflitos. Não conseguia se apresentar de forma minimamente decente: saía do compasso, deixava os músicos desorientados e isso transparecia para o público e comprometia tudo."

Algumas linhas à frente, ela aperta: "Raul usava a cocaína como estimulante e se sentia melhor, mas depois ficava extremamente deprimido pela falta de canalização de sua criatividade, pois não estava gravando nem fazendo shows. Com isso, ele afundava cada vez mais no álcool e na depressão". Até chegar ao fato que só os cônjuges podem relatar: "Um dia, percebi que ele se trancava no banheiro para tomar o álcool de limpeza que eu comprava no supermercado".

PERSONAGEM

Numa conversa com a reportagem há alguns anos, o compositor e guitarrista Roberto Menescal falou sobre o dia em que percebeu que Raul Seixas, o personagem, havia engolido o homem. Raul apontou para o céu e perguntou se Roberto não estava vendo o mesmo disco voador que ele via. 

O bossa-novista disse que não, mas percebeu que, mesmo sem estar aparentemente embriagado ou drogado, Raul acreditava seguramente na imagem de um disco voador. "Ali, percebi que o homem havia dado lugar ao personagem", disse Menescal.

Raul, assim, teria sucumbido ao próprio mito que viu nascer em sua aura, a partir de um determinado momento, à sua revelia? Kika conta no livro que ele se incomodava muito com as pessoas que chegavam querendo tocá-lo ou beijar sua mão. Era, em tese, a imagem da idolatria que ele mesmo ridicularizava na essência de suas músicas. Mas um fato aparente é que Raul, o pai da pequena Vivian e marido de Kika, não conseguiu ser mais forte do que o Raul imagem e estereótipo esponja do mais fiel conceito de roqueiro autodestrutivo que dizia respeito a muitos de seus fãs. 

Quando esse Raul existia da porta de casa para fora, as cenas e causos que protagonizava poderiam até alimentar um anedotário delicioso de ser narrado. O problema era quando estava diante de suas duas meninas, Kika e Vivian. "Eu ainda tenho vontade de chorar quando me lembro", diz Kika. "A gente foi se afastando, ele foi se afastando."

O roqueiro baiano em seu último show ao lado de Marcelo Nova, a quem chamava de %u201CMarceleza%u201D
O roqueiro baiano em seu último show ao lado de Marcelo Nova, a quem chamava de %u201CMarceleza%u201D (foto: Mila Petrillo/CB Press)

FÁBULA

Uma história linda de pai e filha, aparentemente corriqueira mas tão singela, conta do dia em que o peixinho de Vivian morreu no aquário da casa. Para que ela não ficasse triste, Raul criou uma fábula fascinante, que terminava com a mãe do peixinho vindo buscá-lo enquanto Vivian dormia. Esse era o pai Raul, até que as coisas começaram a mudar. 

"Era como se a bebida trouxesse uma espécie de outro Raul, o personagem. Ele voltava para casa e já não era mais aquele homem amoroso. O palco queria isso dele. Quando vi que não teria mais jeito, eu fui embora." Raul representava personagens mesmo diante de especialistas viabilizados por Kika para que ele pudesse se tratar. "Ele entrava no consultório diante de um ou dois médicos e não se abria, não falava, não aceitava o alcoolismo. Um dia, uma médica homeopata me disse: ‘Ele não fala, está sempre representando’."

Kika fala do quanto o roqueiro também baiano Marcelo Nova, do Camisa de Vênus, foi importante na fase final de Raul, levando-o para gravar o elogiado álbum “A panela do diabo”, lançado em 1989. Ao ser visto ao lado de um Raul já bastante debilitado à época, indo cantar até no “Domingão do Faustão”, Marcelo foi acusado por parte dos fãs de ser uma espécie de aproveitador. 

"Foi um enorme erro duvidar de Marcelo Nova. Ele colocou o Raul de volta ao palco, o protegeu, tirou-o do nada e lhe deu um disco de ouro. Por isso Raul o chamava de Marceleza."

Um material inédito são as cartas que a mãe de Raul, Maria Eugênia, enviou para Kika. Elas estavam guardadas com a autora e trazem um conteúdo comovente. Kika fala das composições feitas em parceria com Raul, dos traumas de infância do parceiro, de sua busca por uma pensão para a filha Vivi, depois da separação do casal, e da tensão da partilha, após a morte do artista. Um livro que expõe uma valiosa peça no grande quebra-cabeça de muitas publicações que se tornam histórias tão profundas como as de Raul Seixas. (Agência Estado)
Raul e Kika Seixas foram casados entre 1979 e 1984
Raul e Kika Seixas foram casados entre 1979 e 1984 (foto: Abril Imagens)

“COISAS DO CORAÇÃO”
• Kika Seixas e Toninho Buda
• Editora UBook (audiobook e físico)
• R$ 69,90


Megaexposição projetada para 2022 

Kika Seixas, mesmo depois de revirar o baú de Raul Seixas, que recebeu da mãe do artista, Maria Eugênia, afirma que ainda há muito a ser mostrado. Ela fala sempre da importância de São Paulo na carreira do músico, onde ele realmente teria sido recebido e abraçado como em nenhum outro canto de sua trajetória (a afirmação sempre traz rusgas com fãs baianos) e da vontade de fazer uma grande homenagem ao artista na capital paulista. Sendo assim, Kika revela que a maior experiência memorialística feita a Raul está sendo preparada para ser realizada em São Paulo, em 2022.

A Raul Seixas Experience, "única imersão biográfica na carreira do pai do rock nacional aprovada pelas herdeiras de Raul Seixas, Vivi Seixas, Scarlet Seixas e Simone Seixas", como é apresentada pelos organizadores, está sendo programada para junho do ano que vem.

A mostra será montada sobre uma área com cerca de 900 metros quadrados, ambientes temáticos, música, interatividade e realidade aumentada "para levar o fã a uma experiência única, além, claro, de mais de 4.500 objetos pessoais catalogados originais, desde manuscritos a vídeos inéditos, música, roupas, instrumentos e muito mais para levar o público à loucura".

Depois de estrear em São Paulo, em data e local ainda não divulgados por estarem em estudo, a mostra seguirá para Rio de Janeiro, Curitiba, Porto Alegre e Brasília, antes de finalizar em Salvador.

A empresa responsável será o Grupo Tacatinta, do diretor artístico Branco Gualberto. "A importância deste tipo de evento para Raul é a de proporcionar ao público uma imersão na vida e na obra de um dos maiores artistas do Brasil, imersão essa que vai ser contada em ordem biográfica, com um acervo de cerca de 4 mil peças, entre muitos manuscritos. Vamos também reconstruir locais (que fizeram parte da trajetória do músico). Assim, o público poderá sentir como era na época, por exemplo, o famoso Elvis Rock Club e até poder fazer uma viagem na nave do Plunct, Plact, Zum". (Agência Estado) 


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