Jornal Estado de Minas

CINEMA

Mostra reúne diretores indígenas que filmam a cultura de seus antepassados

O olhar indígena por trás das câmeras ainda tem pouco destaque no cinema nacional. Os povos originários são constantemente registrados a partir das lentes de diretores que não compartilham as mesmas vivências das tribos e isso acaba afetando a narrativa sobre essa realidade cultural. Para ser fiel ao caráter de originalidade, a plataforma Itaú Cultural Play oferece a mostra “Um outro olhar: Cineastas indígenas”, com filmes de diferentes realizadores, etnias e formas de documentar.





“Essa mostra permite integrar o cinema indígena dentro da cinematografia brasileira, coisa que é muito difícil de ver. Os filmes indígenas passam em festivais específicos, não são muito pensados dentro de um conjunto maior”, descreve a curadora da mostra, Júnia Torres, antropóloga, documentarista mineira e diretora do festival Forumdoc.BH.

A mostra traz cinco filmes de diretores indígenas que apresentam diferentes perspectivas sobre a cultura nativa: “Ashiper mulheres” (2011), “Teko Haxy – Ser imperfeita” (2018), “Wai’á Rini, o poder do sonho” (2011), “Yãmiyhex? – As mulheres-espírito” (2019) e “Zawxiperkwer Ka’a – Guardiões da floresta” (2019). A sessão está disponível desde o lançamento da plataforma Itaú Play, em 19 de junho.

Guajajara, awá-guajá, maxakali, kuikuro, xavante e mbyá-guarani são as tribos retratadas nos documentários. As temáticas variam em torno das questões territoriais, dos rituais e da cosmologia indígena. Júlia Torres afirma que a perspectiva é bastante específica e difere do olhar ocidental.





“Os cineastas (indígenas) conhecem melhor do que ninguém a realidade das suas comunidades. Quando a gente (não índio) vai fazer um filme dentro das aldeias, isso passa por um processo de tradução, seja linguística ou cultural, que já é um processo muito complicado. Então, às vezes, os filmes saem mais superficiais e externos a essas realidades. Apenas os próprios realizadores indígenas podem se aprofundar. Isso faz muita diferença no resultado final”, descreve.

Segundo ela, a mostra “Um outro olhar: Cineastas indígenas” é uma forma de conhecer a diversidade cultural desses povos. “É muito importante, porque sai da representação que muitas vezes nós, ocidentais, temos dos povos indígenas do Brasil. Esse cinema tem nos proporcionado uma multiplicidade. Cada etnia tem pontos, modos de pensar, de ser e estar no mundo diferenciados, é uma riqueza cultural muito ampla. Então, os filmes são muito diferentes entre si”, destaca.

ORALIDADE A transmissão dos conhecimentos da oralidade indígena é uma das características retratadas nos filmes. Cada cultura tem suas próprias crenças e rituais, que são preservados pelos anciões ao longo dos séculos. Júnia Torres conta que o cinema se tornou um instrumento de mediação intergeracional das tribos ao contribuir com a preservação das suas tradições.





“Os velhos (indígenas), os mais sábios, querem falar para os jovens cineastas indígenas. Eles querem ensinar. É muito diferente da relação que eles têm com os cineastas não indígenas, que estão lá fazendo reportagens, documentários, mas não têm o interesse de repassar um conhecimento, é superficial”, observa.

*Estagiário sob supervisão do subeditor Eduardo Murta

A presença feminina no universo indígena é abordada em ''As hipermulheres'', filme de Takuma Kuikuro (foto: Vitrine Filmes/divulgação )

Mais do que filmar, é 
preciso compreender


“Wai’á Rini, o poder do sonho” (2011), de Divino Tserewahú, retrata as cerimônias que introduzem os jovens meninos na vida espiritual do povo xavante, que mora no Mato Grosso, e expõe alguns mistérios. As imagens e depoimentos revelam as peculiaridades da celebração, em que os homens xavantes devem ficar em pé, saltar e cantar durante todo o dia, em jejum. Na perspectiva cultural da tribo, o sofrimento é uma forma de descobrir “as forças sobrenaturais”.

“Sonhar é muito importante na vida de um xavante. Através do sofrimento e desmaios durante a celebração, ele pode ver o que vai acontecer no futuro. Quando ele conta o que sonhou, realmente acontece. Ele também pode encontrar aqueles que faleceram nesses sonhos. Por isso é importante sofrer muito. Durante a festa Wa'ia Rini, quem mais sofre sonha mais e tem mais força”, relata um dos anciões em depoimento presente no longa.





Divino Tserewahú participou, em 1987, da iniciação de Wai’á Rini – que ocorre a cada 15 anos, aproximadamente. Na edição seguinte, ele resolveu gravar enquanto participava da celebração na função de guarda – impedindo que as mulheres fornecessem água aos jovens xavantes durante o ritual.

MEMÓRIA O documentário valoriza a memória e a preservação dos ensinamentos dos mais velhos, pensando nas futuras gerações xavantes. O diretor focou nos depoimentos dos anciões, incluindo seu próprio pai. Animados com a possibilidade de eternizar seus ensinamentos, eles contribuíram com a produção, como se representassem a função de um diretor coadjuvante. O registro teve seu valor realçado quando, em 2020, a tribo perdeu 12 desses integrantes mais velhos em decorrência da pandemia de COVID-19.

“Se eu não aceitasse a participação deles, toda a memória, a ideia e o conhecimento deles ia para o caixão junto com eles. Como ainda estavam vivos, eu registrei toda a memória e a sabedoria deles, que vão permanecer para sempre, para o futuro da nossa geração”, comenta Divino Tserewahú, de 47 anos. “Fica a lembrança desse trabalho na plataforma (Itaú Play) e sinto saudade quando assisto.”





“Wai’á Rini, o poder do sonho” (2001) conquistou o Prêmio Nacionalidade Kichwa no 4º Festival Continental de Cinema e Vídeo das Primeiras Nações de Abya Yala, no Equador. “A gente fica contente, porque somos nós mesmos que estamos levando agora (as narrativas dos índios). Antigamente, não tínhamos isso, a pessoa não indígena vinha registrar as coisas e levava falando tudo errado. Isso a gente não aceita mais”, destaca Divino.

Cultura ancestral é registrada em ''Yamiyhex %u2013 As mulheres-espírito'', de Sueli Maxakali e Isael Maxakali (foto: Reprodução )


Câmera na mão desde os 15 anos

Divino Tserewahú lembra que, anteriormente, os povos indígenas não tinham como registrar seus costumes e a história era transmitida oralmente. Aos 15 anos, ele começou a fazer seus próprios filmes para retratar as vivências do povo xavante e foi o primeiro cineasta formado pelo projeto Vídeo nas Aldeias – que desde 1987 promove o “encontro do índio com sua imagem” ao fomentar a produção audiovisual de maneira autônoma nas aldeias.

“Quando me integrei nesse projeto, foi abrindo a minha ideia e olhares sobre vários povos indígenas do Brasil. A trajetória também foi um desafio para o meu conhecimento sobre a comunicação visual e o registro da causa indígena. O Vídeo nas Aldeias, para mim, é uma raiz”, diz. Ele ressalta a importância do olhar indígena por trás das câmeras ao retratar sua realidade por meio de uma analogia.





“Se eu fizer um filme da Austrália, sobre a cultura australiana, eu não vou entender nada. Só vou ver uma coisa linda, bacana e vou filmando sem saber o que significa isso. É igual”, compara. Divino afirma que as próprias tribos contar suas próprias histórias faz uma enorme diferença.

“Essa perspectiva ajuda muito na divulgação de várias culturas indígenas, porque é tanta diversidade cultural no Brasil. Os brasileiros, que estão aqui desde 1500, ninguém sabe (dessa diversidade), é desconhecido. Acho que é melhor nós mesmos, indígenas, fazermos essa divulgação para quem não entende, não conhece a cultura indígena.”

Para ele, um não indígena descreve o que viu, mas sem saber interpretar o que se passa. “Como nós estamos com a câmera em nossa mão, nós mesmos temos de mostrar a nossa realidade, falar sobre nossa luta”, completa.





RECONHECIMENTO

Júnia Torres conhece o trabalho de Divino desde seu primeiro curta-metragem, “Obrigado, irmão” (1998). Desde então, o cineasta participou de diversas edições do Forumdoc.BH, até mesmo como membro do júri. Todas as suas produções foram exibidas no festival mineiro. Ao incluir diretores indígenas na plataforma do Itaú Play, a curadora acredita que faz um movimento de reconhecimento da importância dessa cinematografia.

“É dar visibilidade a esses novos autores, a esse novo protagonismo do cinema brasileiro. Por meio da plataforma, a gente coloca esses filmes em pé de igualdade com todos os cineastas já conhecidos da cinematografia mais clássica”, avalia Júnia Torres. A mostra “Um outro olhar: Cineastas indígenas” fica disponível permanentemente na plataforma Itaú Play e o catálogo será atualizado regularmente, incluindo outros diretores.

MOSTRA “UM OUTRO OLHAR: CINEASTAS INDÍGENAS”
Filmes: “As hipermulheres” (2011), de Takumã Kuikuro; “Teko Haxy – Ser imperfeita” (2018), de Patrícia Ferreira Pará Yxapy e Sophia Pinheiro; “Wai’á Rini, o poder do sonho” (2011), de Divino Tserewahú; “Yãmiyhex? – As mulheres-espírito” (2019), de Sueli Maxakali e Isael Maxakali; e “Zawxiperkwer Ka’a – Guardiões da floresta” (2019), de Jocy Guajajara e Milson Guajajara. Informações: itauculturalplay.com.br.





audima