Considerado por muitos como o maior grupo de rock de todos os tempos, os Beatles se separaram em 1970, porém suas canções continuam sendo gravadas e tocadas ao longo dos anos por artistas do mundo inteiro. Foram mais de 200 músicas gravadas e que seguem vivas, revelando nuances em trabalhos como “Besouros”, projeto do pianista Fernando Moura e do flautista e saxofonista Carlos Malta, juntos há mais de quatro décadas. Eles estão lançando nas plataformas digitais o álbum “Besouros: The Beatles songs 2” (Deck). Em 2017, o duo já havia lançado um disco com 12 clássicos do quarteto inglês, no qual constam pérolas como “Eleanor Rigby”, “Yesterday” e “Come together”.
Como a aposta acabou dando certo, a dupla resolveu partir para o volume 2. “O importante é dar carga na nota verdadeira, a que identifica a canção. O discurso musical que adotamos é criativo, porém sintético. A intenção foi criar pequenas joias que o ouvinte ouvirá do começo ao fim”, diz Malta. Já Moura acredita que o negócio é buscar os caminhos melódicos, o clima. “E isso influenciou na escolha dos instrumentos. Por exemplo, ‘Something’, que já tocávamos nos shows do primeiro disco, é música para sax tenor. Então, a ideia em cada arranjo foi conseguir a maior potência de emoção possível”, explica o pianista.
Malta conta que, para gravar o disco, a dupla procurou o repertório do coração, não necessariamente a canção mais conhecida, porém a que mais os tocava melodicamente. “E também aquelas músicas que abriam mais possibilidades para releituras. Há músicas na qual se pode dar uma viajada maior no arranjo e esse foi um dos nossos critérios. Mas o fato é que cada música que regravamos ao longo desse repertório traz nela, no arranjo em si, uma história toda que tem a ver com a da própria música e uma forma de mostrar a canção de novo, de outra forma.”
Ele explica que há também a questão dos timbres, qual o melhor instrumento para ser tocado nessa ou naquela canção. “Também foi uma viagem selecionarmos as sonoridades de cada faixa. São duas pessoas tocando, mas variamos a sonoridade, desde dueto até algo mais orquestral. Há ainda essa coisa imagética nos arranjos. Eu e Fernando trabalhamos compondo trilhas, a nossa música é muito visual e a dos Beatles também, quando a pegamos com essa visão de recolorir, reutilizar o elemento melódico, inserido num outro contexto harmônico e de instrumentação. A música sai daquele lugar que muita gente conhece e vai para outro”, diz Malta.
''O importante é dar carga na nota verdadeira, a que identifica a canção. O discurso musical que adotamos é criativo, porém sintético. A intenção foi criar pequenas joias que o ouvinte ouvirá do começo ao fim''
Carlos Malta, flautista e saxofonista
FLAUTA DE BAMBU
Para o saxofonista, a música também tem esse poder de se transformar. “‘You’ve got to hide your love away’, que gravei com a flauta de bambu, a bansuri, é algo que tem uma visão e é completamente diferente da versão deles. Então, essa versatilidade da obra de Lennon, McCartney e Harrison, passada dentro da nossa lente, gera esse som viajante. Conheço muita gente que passou a gostar mais dos Beatles a partir desse nosso trabalho.”Malta esclarece que a dupla trafega neste universo “viajante”, mas endossa a visão original. “É tipo um filtro, a pessoa ouve a música dentro dele. Isso tem a ver com a seleção dos timbres, das harmonias, com a instrumentação e com essa versatilidade que eu e Fernando temos em utilizar muitos instrumentos. E o estúdio acaba sendo um instrumento a mais. Acho até que ele passa a ser um elemento que torna isso possível. Estamos preparando um show para quando as coisas voltarem ao normal e temos feito gravações desse material novo de dueto, assim quase que acústico. Moura tocando um piano acústico e eu revezando em dois ou três instrumentos. Essa visão não perde a força, pelo contrário, a música ganha outra que é a de tocar ao vivo, os dois tocando juntos.”
Para o flautista, ao mesmo tempo, existe a possibilidade de apresentar o repertório sem perder a essência dele que já está gravada, porém mostrando outra face. “Às vezes, há aquela coisa de fazer da música uma estrada, para improvisarmos, mas a nossa proposta é diferente. Essa que tivemos desde o primeiro disco é de sempre apresentar uma visão orquestral, algo que tem esse elemento da improvisação. Mas é um elemento do arranjo, no qual o improviso não é o centro das atenções, é só mais um momento. E colocamos também as nossas influências nos arranjos. Na verdade, a estrada continua a mesma, só muda de nome. Continua bonita, mostrando uma paisagem e essa é a nossa visão, nossa forma de olhar para aquela beleza e falar: podia ser assim.”
Ele explica que, muitas vezes, a instrumentação dos quatro cabeludos de Liverpool era a base do disco, mas, quando se pega as coisas que George Martin colocava em volta, vê-se a quantidade de coisas que estão escorando o som do quarteto. “Essa transcrição é fácil de ver no songbook da banda. A nossa visão também é usar os timbres para dar força à canção. A nossa instrumentação, diferentemente da dos Beatles, é polivalente, no sentido de timbres. Temos uma infinidade de teclados na mão do Fernando que os utiliza com parcimônia e inteligência.”
Para Malta, Fernando Moura toca a quantidade que precisa ser tocada. “São camadas de pensamentos, é linda a construção dele. E, ao mesmo tempo, vêm as minhas coisas, meus sons. Somamos essas potencialidades e dá esse resultado. Temos uma sintonia e um respeito mútuo grande. Acho que isso ajuda na forma de trabalhar a confiança. Confiamos muito um no outro. Fernando escreve e tem a certeza de que vou tocar do jeito que ele gostaria. Por outro lado, fico naquela expectativa das armações que ele faz, de me dar esse apoio para o som poder rolar. É uma coisa de dois e isso é que é bonito. Também tem algo da fluência com que foram gravadas essas músicas. Fizemos isso ao longo de 2020, logo no começo da pandemia”, detalha.
''Não há nem piano e nem sopro na formação original dos Beatles, embora Paul e John tocassem, fizessem algumas coisas nesse sentido... Saímos então por esse lado, são timbres que não são os principais, pois não têm guitarras''
Fernando Moura, pianista
SEM INVENTAR
Para Fernando Moura, o segredo ao regravar um clássico é manter a melodia e não inventar muito. “Não há nem piano e nem sopro na formação original dos Beatles, embora Paul e John tocassem, fizessem algumas coisas nesse sentido. Basicamente, era um quarteto de duas guitarras, baixo e bateria. Saímos então por esse lado, são timbres que não são os principais, pois não têm guitarras. Até que nos shows convidamos alguns guitarristas para nos acompanhar. Mas isso é legal nos shows, não no disco, porque fazemos os arranjos tendo outros parâmetros como base.”Quanto ao repertório, a dupla foi selecionando de comum acordo. “Quando minha filha nasceu, quis aprender a tocar ‘Blackbird’ para ela. Achava a música muito bonita. Acontece que ela parece ser uma canção muito simples, mas não é, porque tem um monte de compasso quebrado. E fiquei intrigado com aquilo.”
Quando o maestro e arranjador inglês George Martin esteve no Rio de Janeiro, em 1993, Moura foi convidado para tocar com ele no Projeto Aquarius, um tributo aos Beatles, feito com banda e orquestra. “Notei como aquele universo era mais complexo do que imaginava e me encantei quando ouvi os violoncelos de “Eleanor Rigby”. Mas era algo orquestral, com os arranjos privilegiando a orquestra e no repertório não constava ‘Blackbird’. Aquilo me chamou a atenção, mas realmente foi aprendendo a tocar ‘Blackbird’ que me despertou a intenção de gravar um disco com músicas dos Beatles.”
Depois da escolha de “Blackbird”, Moura conta que a seleção continuou. “Escolhi o ‘Golden slumbers’ e Carlinhos, ‘You’ve got to hide your love away’. Enfim, tentamos balancear as músicas, não queríamos usar ritmo eletrônico, pois achávamos que não combinava com a estética dos Beatles. Aí, fomos alternando, por exemplo, ‘Paperback writer’ não tem instrumento de ritmo, mas ‘Get back’, que é uma música parecida, bem na onda, traz a percussão de Bernardo e o Gabriel”, detalha.
Malta e Moura garantem que foram fazendo tudo na intuição e, quando viram, já estavam com o disco pronto. “E conseguimos que a gravadora novamente se interessasse em fazer essa ponte com as editoras para que liberassem as músicas. Acredito que, embora seja um dos repertórios mais gravados, acho que conseguimos dar uma versão pessoal, sem descaracterizar. Na verdade, um pretexto nosso como instrumentistas de colocar nossa assinatura nas músicas, que são um veículo maravilhoso, pois as composições dos Beatles são lindas”, pontua o pianista.
NOVO DISCO
Malta revela que, por conta da pandemia, está gravando em sua casa, onde montou um pequeno estúdio. “Tivemos que reinventar essa forma de colaborar o trabalho do outro. Gravo no computador preparando o som e mando para as pessoas gravarem em cima, com referência para o cara colocar o som no lugar certo. Tenho feito muitos trabalhos assim.”No ano passado, o saxofonista chegou a fazer um show com o grupo Pife Muderno, no Sesc Instrumental. “Ainda gravamos um documentário para o programa ‘Passagem de som’. Foi a única coisa que fizemos com público. Este ano, fiz uma live em um teatro, mas sem público. As coisas estão bem devagar. Infelizmente, nossa área foi uma das mais afetadas.”
Malta revela que está trabalhando em um novo disco do Pife Muderno. “Eu e Fernando gravamos outro álbum que ainda vamos lançar, mas que são de músicas autorais. É um projeto chamado ‘Cidades sonoras’, que tem uma pegada contemporânea.”
REPERTÓRIO
» “GOLDEN SLUMBERS”
» “SOMETHING”
» “JULIA”
» “WHILE MY GUITAR GENTLY WEEPS”
» “HELP”
» “YOU’VE GOT TO HIDE YOUR LOVE AWAY”
» “A DAY IN THE LIFE”
» “LUCY IN THE SKY WITH DIAMONDS”
» “WITH A LITTLE HELP FROM MY FRIENDS”
» “NORWEGIAN WOOD”
» “LET IT BE”
» “PAPERBACK WRITER”
“BESOUROS: THE BEATLES SONGS 2”
• Carlos Malta e Fernando Moura
• Deck
• 12 faixas
• Disponível nas plataformas digitais