Jornal Estado de Minas

MÚSICA

Amaro Freitas faz tributo à ancestralidade negra com 'Sankofa'

Amaro Freitas traz novo projeto com referências à cultura africana
 
Desde que surgiu, com o elogiado disco de estreia "Sangue negro" (2016), o pianista pernambucano Amaro Freitas é visto como promessa do jazz contemporâneo brasileiro. Com o passar dos anos, a expectativa em torno do artista se cumpriu e o talento dele foi confirmado com a chegada de seu segundo registro de estúdio, "Rasif", em 2018. 





Amaro conquistou espaço cativo em festivais no Brasil e no exterior, gravou com Milton Nascimento, Lenine e Criolo, participou do Montreux Jazz Festival e passou a ser elogiado pela crítica internacional. A revista norte-americana Downbeat, especializada em jazz, se referiu ao trabalho do músico como "uma abordagem do teclado tão única que é surpreendente".

Todo esse prestígio levou o artista a diferentes partes do mundo e o inspirou a olhar mais atentamente para questões caras à sua ancestralidade. Em uma das passagens que fez por Nova York, ao ir a uma feira africana, Amaro Freitas se encantou com uma bata estampada com um pássaro cuja cabeça era voltada para trás. 

Descobriu que o desenho correspondia a um símbolo Adinkra – pertencente aos povos acã, grupo linguístico da África Ocidental –, e é traduzido como "retorno ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro". Fascinado pelo significado da imagem, ele decidiu incorporá-la em seu novo álbum. E assim começou a nascer o recém-lançado "Sankofa".





RESISTÊNCIA 
"O disco fala sobre ancestralidade, celebração e orgulho de todos que resistiram fortemente para que hoje eu estivesse aqui. 'Sankofa' fala sobre olhar para nossa ancestralidade, mas também entender que o futuro é ancestral e ao mesmo tempo é minha responsabilidade cuidar do presente para que esse futuro seja real. Um dia eu serei o ancestral de alguém e foi em ‘Sankofa’ que meus olhos se abriram. Foi nesse nome que eu encontrei minha missão nesse terceiro disco autoral", diz ele.

O álbum, patrocinado pela Natura Musical e lançado pelo selo inglês Far Out Recordings, foi gravado pelo Amaro Freitas Trio, composto pelo pianista, o baixista Jean Elton e o baterista Hugo Medeiros. Com oito faixas distribuídas ao longo de pouco mais de 45 minutos, o registro traduz a elaborada busca do artista em misturar jazz com ritmos nordestinos, como o frevo e o baião.

O trabalho faz referência à história de Baquaqua, príncipe que foi escravizado e trazido para o Brasil, e a região de Vila Bela, no Mato Grosso, onde a rainha quilombola Tereza de Benguela liderou uma comunidade negra e indígena por duas décadas.  
 

ABRAÇO 
"Na música 'Vila Bela', eu quis sentir como seria dar esse abraço em Tereza de Benguela. Fechei meus olhos, imaginei a vista daquele quilombo, cheguei perto de Tereza e dei-lhe um abraço muito elegante. E eu sinto esse abraço quando começo a tocar as primeiras notas longas do piano nessa música. A ancestralidade está dentro de nós, então eu fui lá no íntimo do meu ser para trazer a melhor versão para cada homenagem", explica.





Parceiro para quem gravou o piano das músicas "Cais" e "Não existe amor em SP", lançadas em parceria com Criolo no EP "Existe amor", Milton Nascimento recebe uma dessas homenagens na faixa final do disco, intitulada "Nascimento".

Amaro define a oportunidade de ter trabalhado com o artista mineiro como "um grande presente que a vida me deu". "Milton é influência mundial para vários artistas. Nós devemos nos orgulhar de ter uma potência da natureza como Milton, sendo brasileiro. Amo o Milton e toda a sua obra, sou muito influenciado por ele e acredito na nossa amizade", afirma o pernambucano.

Artista estudioso, ele conta estar em constante processo de aprendizagem, não só para entrar em estúdio, como também para os ensaios e apresentações. Define a "percepção que vou ter relacionada a uma experiência da vida" como sua principal fonte de inspiração. Por conta disso, ele demora a entrar em estúdio e registrar suas composições. "Sankofa" ganhou tempo por conta da pandemia. O lançamento do disco estava programado originalmente para meados de 2020.





"É impossível absorver tudo o que nos chega e decodificar essas informações rapidamente, já criando um roteiro sonoro com isso. É impossível ser tão rápido assim, quando o propósito é mergulhar de forma profunda e não só na superfície", pontua. "Geralmente, entre um disco e outro, levo de dois a três anos para chegar a um lugar maduro com as músicas, um lugar novo, um lugar que me tire da minha zona de conforto. E, mesmo depois da gravação, quando vamos vivendo as músicas em apresentações do trio, elas ainda continuam crescendo como se fossem seres vivos."

E esse princípio tem funcionado, até mesmo na percepção do artista, que vê a música como "a extensão da minha alma". "Quando 'Rasif' chegou na crítica internacional, tivemos uma resposta muito boa, justamente porque eles viam o quanto aquele som era original. E o público gosta é de artistas que não repetem modelos, então me permito ir por diversos caminhos e tento ser o mais honesto possível comigo e com os meus colaboradores", afirma.

Tudo isso sem perder a intuição e as referências nacionais que o formaram. Amaro Freitas trata sua música com liberdade e não se prende a um ritmo, baseando suas composições em um conjunto indefinido e improvável de inspirações que vão das igrejas evangélicas até ritmos afro-brasileiros, passando por músicos renomados, como Naná Vasconcelos, Cecil Taylor e Herbie Hancock.






VITRINE 
O reconhecimento internacional também dá à música de Amaro Freitas a responsabilidade de funcionar como uma vitrine do Brasil na época em que o país tem colecionado momentos constrangedores no exterior. Questionado sobre que país tem em mente quando compõe, ele responde: "Acredito no Brasil de Ailton Krenak. Eu acredito na poesia de Gilberto Gil".

"Nosso Brasil está cada vez mais destruído, mas eu me agarro na frase do Gil: 'Andar com fé eu vou que a fé não costuma falhar'. Para que eu estivesse aqui, muitos vieram antes de mim porque não perderam a fé. Eu tenho a música, que é meu poder, então, se eu puder quebrantar o coração de alguém com esse poder, com esse som, com essa mensagem, eu o farei", diz.

E irá além: "Chamarei todos que me escutarem dizendo: a ancestralidade mãe-natureza mandou te  chamar. Vamos voltar às nossas raízes, nos conectar de novo com o planeta. Como diz Krenak, 'vamos entender o rio como nosso avô, a árvore como nossa prima, que todos nós fazemos parte de uma ciranda cósmica'", acrescenta.





Amaro Freitas também se preocupa com o status que o jazz ganhou ao longo dos anos como gênero dos intelectuais. Por isso, inclui em sua lista de missões torná-lo acessível. "Quando as pessoas escutam minha música, não necessariamente elas precisam entender de música. Só precisam querer se conectar com ela."

Certo de que "Sankofa" cumpre esse requisito, o pianista já prepara trabalhos futuros. Um deles, aprofundado durante a pandemia, envolve piano preparado, caso em que peças são postas entre as cordas do instrumento para produzir efeitos sonoros. Ele também adianta que parcerias com artistas da música popular brasileira estão a caminho, só não pode dizer com quem ou quando elas chegam. A dica é manter-se atento, como a música de Amaro pede.

“SANKOFA”
.De Amaro Freitas
.8 faixas
.Far Out Recordings
.Disponível nas plataformas digitais
.R$ 43,50 (em amarofreitas.com/shop/)