Enquanto pintava o painel “Guerra e paz” para a sede da ONU, Candido Portinari (1903-1962) recebeu o convite da Editora Olympio para ilustrar a reedição do clássico “Dom Quixote", do espanhol Miguel de Cervantes. O artista brasileiro já sofria com a intoxicação causada pelo chumbo presente nas tintas quando, em 1956, começou a desenhar as 21 ilustrações inspiradas na história do “cavaleiro da triste figura”. O resultado encantou o amigo Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), que resolveu escrever um poema dedicado a cada gravura.
O livro “D. Quixote: Cervantes, Portinari e Drummond" só foi publicado em 1972, após a morte do artista plástico, em decorrência da intoxicação. Essa união histórica será celebrada em exposição aberta ao público, na terra natal de Drummond, a partir deste sábado (10/07).
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As 21 ilustrações de “Dom Quixote” são uma parte menos conhecida da obra de Portinari, famoso por suas telas em torno de grandes questões sociais brasileiras, como “Os retirantes” (1944) e “O lavrador de café” (1934). Impossibilitado de utilizar o pincel devido aos problemas com a tinta, ele desenhou com lápis de cor, sem perder os traços inconfundíveis que marcaram seu lugar na arte moderna brasileira. Seu filho, João Candido Portinari, conta que o pai voltou a ser “criança” nessa experiência.
LEVEZA
“Ele estava num momento de muita melancolia, sofrendo ataques com a chegada de toda onda abstracionista, concretista, que tinha um propósito de afastar os pintores que eram figurativos, como ele, Di Cavalcanti, Guignard, Pancetti. Ele foi muito atacado a partir dos anos 50, então se encontrava num período de muita melancolia. Fazer ‘Dom Quixote’ foi um momento de ternura, alívio, diversão e leveza para ele”, descreve João Candido Portinari, de 82 anos, fundador e diretor-geral do Projeto Portinari.
Mesmo sofrendo com a intoxicação, Portinari nunca enfrentou problemas para desenhar, segundo João Candido. As ilustrações demonstram o uso sofisticado do lápis de cor, inclusive para destacar o lado humorístico de Dom Quixote. Ele acredita que o pai se identificava com a figura trágica do cavaleiro andante.
“Casa muito, porque ele (Portinari) também foi um Dom Quixote na sua luta pela justiça social, pela paz. Em todas as lutas que empreendeu, inclusive na política, ele não deixava de ser, da sua maneira, o Dom Quixote”, afirma. João Candido cita o livro “O cavaleiro dos sonhos” (2009), de Ana Maria Machado, que mistura a biografia de Portinari e a história de Dom Quixote para destacar a similaridade entre os dois.
“Ela (Ana Maria Machado) fala do sacrifício de Portinari ao desobedecer às ordens médicas e continuar pintando ‘Guerra e paz’, sabendo que poderia ser fatal, como de fato foi”, aponta. O painel, encomendado para a sede da Organização das Nações Unidas em Nova York, se relaciona com as ilustrações de “Dom Quixote” pelo fato de representar a fase globalista de Portinari, após o artista se debruçar durante anos sobre as questões nacionais.
A obra também marca a parceria entre Carlos Drummond de Andrade e Candido Portinari, que foram amigos. Na crônica “Estive em casa de Candinho”, publicada no livro “Confissões de Minas”, Drummond descreve uma de suas visitas à casa do pintor, no Bairro das Laranjeiras, no Rio de Janeiro, na companhia de outros escritores, como Mário de Andrade e Manuel Bandeira.
“Como esquecer, Candinho, tua casa de Laranjeiras? E aquelas horas em que eu, calado e gauche, sentia em mim, sem confessá-lo o orgulho de ser do teu tempo, da tua companhia...", conclui Drummond. João Candido conta que se lembra com detalhes das noites de macarronada em sua casa, que “não tinham começo nem fim”.
“Aquelas macarronadas eram coisas que aconteciam todas as semanas praticamente. É uma coisa que, infelizmente, no Brasil nós perdemos. Naquela época, havia uma convivência intensa de todas as pessoas dessa geração a discutir arte, literatura, poesia, política, mundo, Brasil”, relata.
Alguns dias após a morte de Portinari, em 1962, Drummond escreveu o poema “A mão” em homenagem à trajetória do amigo. A pedido de João Candido Portinari, o poeta mineiro também escreveu uma crônica destacando a importância do Projeto Portinari, em 1980, que recuperou o apoio financeiro da organização em uma das crises enfrentadas.
LIVRO
A nova edição do livro, “Dom Quixote visto pelos artistas brasileiros Portinari e Drummond” (2021), foi publicada em abril pela Editora Museos Castro Maya, com apoio do Instituto Cervantes e do Projeto Portinari. O lançamento inclui a suíte musical do maestro Norberto Macedo, com 21 peças de violão clássico inspiradas na obra. “Esse livro é uma grande alegria para nós, porque a gente sonhou durante muito tempo em fazer essa re- edição”, comenta João Candido.
Ele se diz emocionado com a realização da exposição na cidade natal de Drummond, em meio à reabertura dos espaços culturais para o público em Minas Gerais. “Estamos todos precisando muito sair dessa tragédia em que ainda estamos mergulhados. A gente agora pode sair com a arte, trocar as plataformas digitais pela vida real, o contato, o afeto, o abraço. Acho que vai ser uma coisa transformadora. É claro que a gente vai ser diferente do que era antes, é uma nova perspectiva de vida. Acho que este momento em Itabira vai ser inaugural também, de certa forma, dessa nova convivência.”
*Estagiário sob supervisão da editora Silvana Arantes
“Ocupação Dom Quixote, Portinari e Drummond”
Deste sábado (10/07) a 10/09, na Praça do Areião. Mais informações nas redes sociais do Flitabira