A TV Itacolomi está no ar, a Panair do Brasil mantém-se ativa, assim como o cantor Wilson Simonal. Só que os telefones celulares funcionam, mesmo que a internet seja discada. Ninguém trabalha tanto quanto os entregadores, que cruzam o trânsito a jato, pois não podem atrasar um minuto. Tais personagens circulam por lugares facilmente reconhecíveis, como a Avenida Cristiano Machado, com seu trânsito caótico, e a Pampulha, com seus cartões postais: a Igrejinha, o Cassino e a Casa do Baile.
É neste universo cheio de anacronismos que habita Gustavo, um mineiro de 13 anos, o protagonista de “O serviço de entregas monstruosas” (Intrínseca, 416 páginas), de Jim Anotsu. É o décimo título do autor de 33 anos, mineiro de Itaúna que chegou a Belo Horizonte aos 18 para cursar Letras na UFMG. Adotou a capital como sua cidade e a reimagina no romance de aventura, fantasia, referências históricas e cultura pop.
“A gente já viu a Londres alternativa de Neil Gaiman (no livro “Lugar nenhum”), conhece coisas mágicas de Nova York. Meu objetivo era trazer a magia para BH, algo que fosse extremamente ligado com a nossa realidade”, diz Anotsu, escritor, tradutor e roteirista, cujos títulos foram lançados em 13 países.
O cenário familiar também está em outro título dele. Anotsu participa da coletânea de contos “De repente adolescente”, recém-lançada pelo Seguinte, selo da Companhia das Letras voltado ao público jovem. Em “A batalha das mamonas verdes”, o Curral del Rei está prestes a ser destruído para que Aarão Reis possa construir a nova capital.
Em “O serviço de entregas monstruosas”, o cenário é Bello Horizonte, uma cidade onde seres fantásticos vivem lado a lado com os humanos. Logo uma força maligna aparece para destruir a tudo e a todos. Só quem pode impedir o grupo é Gustavo e a fada Strix, criada pela família do garoto. A narrativa tem início quando a dupla de entregadores sofre uma tentativa de roubo em sua primeira entrega. Sem saber, os dois carregavam o último ovo de Dragão da Patagônia, algo de valor inestimável. Acredita-se que na idade adulta tais dragões têm o poder de transformar brita em ouro.
VILÃO
Quem está atrás da carga é Le Chat, autodenominado Nero do Crime. Uma vez que conseguiram escapar do vilão, Gustavo e Strix tomam o maior susto quando do ovo nasce um Dragão da Patagônia. O filhote não tem a menor vocação para ajudá-los. A história é contada em primeira pessoa por Gustavo, que não se furta a usar o “mineirês”. Mas as notas de rodapé são de Strix, que, em suas observações, aproveita para criticar o “irmão”. A narrativa é ágil, recheada de ilustrações de Felipe Nero Cunha.
“O cenário do livro é basicamente o quintal da minha casa”, comenta Anotsu, morador do Planalto, região Norte de BH. Ele diz escrever para crianças de 8 a 12, 13 anos, o que o mercado editorial internacional chama de Middle-Grade, algo intermediário entre o infantil e o segmento Jovem Adulto. Anotsu levou dois anos para finalizar a obra.
“No início seria uma história simples. Mas à medida que a pandemia foi acontecendo, e todo o caos que estamos passando, com a instabilidade política crescendo, comecei a trazer isto para dentro do livro. Discuto, por exemplo, o autoritarismo, o fascismo. Os vilões são basicamente integralistas, no livro chamado deltalistas, uma versão diferente do nosso mundo”, diz Anotsu, lembrando-se que personagens clássicos como Alice e Peter Pan sempre tiveram um viés antiautoritário.
ESPELHO
Anotsu tem consciência de que o leitor muito jovem não tem as referências que ele apresenta na narrativa. “Sei que as crianças não vão pegar (todas as citações) mas, de alguma forma, elas explicam o mundo. É um jogo de espelhos.”
O escritor, que sempre publicou para o público infantojuvenil, acredita que, acima de tudo, não se deve subestimar o leitor. “Quando você gosta de um livro, volta a ele outras vezes ao longo da vida. Com novas experiências, você obtém novas camadas a cada leitura. É como dizia o (crítico literário americano) Harold Bloom: se um livro infantil só pode ser lido por uma criança, não é um bom livro.”
O autor escreve desde a infância, mas publicou seu primeiro título em 2010. Ainda para 2021 Anotsu terá outros três lançamentos. O segundo volume de “A batalha do Acampamonstro”, que vai dar sequência à história lançada em 2018, uma nova edição de “Rani e o sino da divisão” (2014) e um título inédito.
Seu método de escrita é bastante peculiar. Anotsu escreve todos os seus livros a mão. Depois passa para o computador, imprime, revisa a mão, volta para o computador. “Com ‘O serviço de entregas monstruosas’ isto aconteceu umas quatro ou cinco vezes”, ele diz.
No início deste ano, ele recebeu o diagnóstico do espectro autista. “A escrita é uma coisa que faz sentido para mim. E como tenho déficit de atenção, se estiver no computador vou perder o foco. Se escrevo no papel, não tem nada ao meu redor para me distrair”, conta.
“O SERVIÇO DE ENTREGAS MONSTRUOSAS”
.De Jim Anotsu
.Intrínseca (416 págs.)
.R$ 49,90 (livro) e R$ 24,90 (e-book)
Autor assina roteiro de Gato Galático
Um dos maiores canais infantis do YouTube, Gato Galáctico vai ganhar filme. Com lançamento previsto para o segundo semestre, “Acampamento intergaláctico” vai acompanhar o jovem Ronaldo de Azevedo (o youtuber que criou o canal), que, na história, é um apaixonado por ETs. Sempre questionado por todos, ele conseguirá provar a presença de alienígenas quando vai acampar com a irmã.
Lançado em 2013, com o objetivo de incentivar a arte e a criatividade das crianças, o canal Gato Galáctico conta com 14,3 milhões de inscritos e mais de 4,5 bilhões de visualizações.
Jim Anotsu escreveu o roteiro ao lado de Luiz dos Reis e Fabrício Bittar, também diretor do filme. O longa é uma produção da Clube Filmes, que está desenvolvendo para o cinema uma nova versão de “Sítio do Picapau Amarelo”. Anotsu já fez duas versões do roteiro. “Sem deixar de ser fiel a Monteiro Lobato, estou tentando trazer um olhar mais século 21 para a história”, afirma.
TRECHO
“Fomos, de novo, pela perigosíssima avenida Cristiano Machado, com suas armadilhas esburacadas, motoristas incompetentes e buzinas irritantes. O caminho pra Área Hospitalar era de mais ou menos trinta minutos num dia de trânsito bom. Levamos uma hora. Culpa de uma obra no túnel do Floresta...A Área Hospitalar era uma parte do Bairro do Quartel, no leste da cidade – pedaço que abrigava os maiores hospitais de Bello Horizonte e a Faculdade de Medicina Sobrenatural da UFMG. Era um bairro tranquilo e cheio de árvores eternamente verdes, culpa da magia que Itamar Franco, um antigo Presidente de Minas, mandou lançar por lá. Tinha de tudo na região: colégios, bancos, bares, restaurantes e até um matadouro, fazendo com eu a vista de boiadas no asfalto fosse corriqueira. E o bairro tinha nome de Quartel por causa do 1º. Batalhão de Polícia Mágica da Capitania das Minas Geraes. Ele ficava numa praça onde velhos se exercitavam, o que aqui pode ser entendido como ‘jogavam truco nas mesinhas espalhadas’. O ecossistema era composto, na maior parte, de idosos e pombos, não se via um sem o outro. Dali em diante, se andasse mias um pouquinho, caia no Bairro da Imigração, de onde saiam as grandes bandas de roque pauleira da capital.”