Depois do impacto causado pela sessão de “O marinheiro das montanhas”, de Karim Aïnouz, cujo final da exibição na sexta (9/07) foi marcado por uma faixa vermelha com os dizeres “Brasil: 530 mil mortos. Fora, gângster genocida”, a crise sanitária no Brasil voltou à cena no Festival de Cannes. A equipe do filme brasileiro "Medusa" exibiu ontem (11/07) no tapete vermelho a seguinte mensagem, em inglês: "533 mil morreram no Brasil de uma doença para a qual já tem vacina." O protesto ocorreu durante a apresentação do filme italiano "Tre piani".
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A narrativa, ainda que tenha um quê de distopia, tem uma base factual. “Nos últimos anos, presenciamos uma parcela da sociedade brasileira defender o retorno a uma valorização de um modelo de mulher devota ao homem; ou melhor, ‘bela, recatada e do lar’. Além disso, em 2015 me deparei com uma série de notícias de jornais sobre ataques violentos a garotas adolescentes, realizados por outras jovens mulheres. Elas atacavam em grupo, na maior parte dos casos por considerarem a vítima ‘promíscua’”, afirmou a diretora.
PALMA DE OURO
Cannes entra hoje em sua semana decisiva. A Palma de Ouro será concedida no sábado (17/07) pelo júri presidido por Spike Lee, que prometeu "não ser um ditador". "Prometi aos jurados que não seria um ditador, que seria democrático... mas até certo ponto, porque se o júri estiver dividido quatro contra quatro, sou eu quem decide!", declarou, com humor, o cineasta. Vinte e quatro produções estão na disputa pelo prêmio principal.
Wes Anderson com "A crônica francesa" e seu elenco de luxo – Bill Murray, Adrien Brody, Tilda Swinton e Benicio del Toro – aterrissarão na Croisette nesta segunda. Dois outros vencedores da Palma de Ouro, o francês Jacques Audiard e o tailandês Apichatpong Weerasethakul, assim como o iraniano Asghar Farhadi e o russo Kirill Serebrennikov, também apresentarão seus trabalhos nesta semana.
Até agora, os críticos foram especialmente convencidos por "Annette", o musical explosivo e excêntrico estrelado por Adam Driver e Marion Cotillard que abriu o festival. Mas "Benedetta", do holandês Paul Verhoeven, um coquetel de religião e lesbianismo ambientado na Itália do século 17, vem logo atrás.
Como as protagonistas femininas dos filmes anteriores de Verhoeven, "Instinto Selvagem" (Sharon Stone) e "Elle" (Isabelle Huppert), Benedetta, uma freira lésbica interpretada pela francesa Virginie Efira, desenvolve uma capacidade de manipulação que transforma a congregação em que vive desde criança.
A competição marca a volta do cinema mundial às telonas depois que a pandemia fechou os cinemas e cancelou festivais ao redor do mundo, com algumas exceções como o Festival de Veneza, na Itália, e de San Sebastián, na Espanha.
MULHERES
Por isso, Cannes incluiu filmes rodados antes e durante a crise sanitária e alguns têm como fator comum personagens prisioneiros de seu próprio tormento, como Adam Driver em "Annette", o israelense Avshalom Pollak, em "Ahed's Knee", e a norueguesa Renate Reinsve, atriz revelação por seu papel em "The worst person in the world".
As mulheres também ocupam lugar de destaque, seja com temas sobre o aborto, como no chadiano "Lingui", ou o amor entre elas, como em "Benedetta", o francês "La fracture" e o finlandês "Compartment no.6".
O italiano Nanni Moretti exibiu ontem na competição principal “Ter piani”. Duas décadas depois de "O quarto do filho", o cineasta tenta sua segunda Palma de Ouro. Com um cinema tão pessoal quanto político, o italiano está entre os grandes nomes do cinema europeu e foi indicado seis vezes em Cannes.
Como muitos dos filmes apresentados este ano, "Tre piani" é baseado em um romance. Nesse caso, é a obra homônima do escritor israelense Eshkol Nevo, um olhar sobre a sociedade de seu país através dos inquilinos de um mesmo prédio em Tel Aviv. Moretti, de 67 anos, mudou a trama para Roma e, como de costume em sua filmografia, aparece em um dos papéis, como magistrado.
Dois outros filmes que concorrem ao prêmio principal foram apresentados neste domingo (11/07): o japonês "Drive my car", adaptação de uma peça do escritor Haruki Murakami assinada por Ryusuke Hamaguchi, e "Bergman Island", da francesa Mia Hansen-Love. Este último é a chance de o Brasil levar o prêmio máximo pelas tabelas, já que é uma coprodução com a RT Features, de Rodrigo Teixeira.
VOLTA POR CIMA
Estrelas de Hollywood marcaram presença no fim de semana. Sean Penn foi aplaudido no sábado (10/07) durante vários minutos ao final da exibição de "Flag Day". Cinco anos atrás Cannes em peso vaiou outro filme de Penn, “A última fronteira”, com Jarvier Bardem e Charlize Theron. O filme foi tão criticado que nem chegou aos cinemas nos Estados Unidos.
O ator e diretor assistiu à estreia oficial do filme, na disputa pela Palma de Ouro, com sua filha Dylan, a protagonista, e seu filho Hopper Jack, que tem um papel coadjuvante. “Confiamos no roteiro, com uma história que pode nos surpreender e que esperamos que surpreenda o público”, declarou o cineasta de 60 anos ao chegar ao tapete vermelho.
Penn assume funções duplas no filme, como diretor e ator, interpretando John Vogel, um ladrão de banco na vida real e vigarista. O aniversário do personagem cai em 14 de junho, inspirando assim o título do filme. Dylan interpreta sua filha Jennifer, uma aspirante a jornalista que luta com seu relacionamento fragmentado com a família.
Ontem pela manhã, na coletiva de imprensa, Penn mirou no governo Donald Trump. Descreveu a antiga administração americana como “obscena” e disse que a reação do ex-presidente à pandemia da COVID-19 foi a pior possível. "Parecia realmente que alguém atirava nas pessoas com uma metralhadora de sua torre na Casa Branca".
O comentário sobre Trump foi feito em resposta a pergunta sobre sua ONG Core (Community Organized Relief Effort) no combate à COVID. Criada em 2010 para auxiliar as vítimas do terremoto no Haiti, a Core, no início da pandemia, passou a atuar na tentativa de controlar a doença.
Em abril, a ONG anunciou a doação de cerca de US$ 10 milhões (R$ 52,6 mi) para ampliar a capacidade de atendimento em centros de saúde e postos de vacinação do Rio de Janeiro. “A situação nos lugares em que minha organização trabalha hoje, Brasil, Índia, é de tanto desespero. Nós estamos em uma situação muito mais favorável aqui”, disse.
“Flag Day” segue uma série de estreias emocionantes em um festival que muitos acreditavam ser impossível de encenar enquanto o mundo luta contra a pandemia do coronavírus.
FANTASMA DO VÍRUS
Ainda que esta edição de Cannes venha mostrar a força da indústria cinematográfica que vive em uma crise sem precedentes desde o início da pandemia, o fantasma do vírus está presente. Após a divulgação de um caso de COVID-19 na equipe do filme israelense “Ha’Berech”, o diretor do festival, Thierry Frémaux, afirmou no sábado (9/07) que não há motivo para preocupação sobre uma contaminação mais ampla.
Mas a pandemia foi a causa de outra má notícia para Cannes: a atriz Léa Seydoux, que está em três filmes da competição principal que serão exibidos nesta semana, contraiu o coronavírus em Paris. A francesa já foi vacinada e está assintomática. Até ontem sua presença era incerta.
Nesta segunda, será a première de “A crônica francesa”, de Wes Anderson, que conta com Seydoux no elenco. A atriz deveria participar outras duas sessões de gala, em que diretor e atores posam para as fotos e sobem as escadas revestidas de tapete vermelho sem usar máscaras. Ela também está em “França”, de Bruno Dumont e “The story of my wife”, de Ildikó Enyedi.