Primeiro filme de Glauber Rocha (1939-1981), o curta-metragem “Pátio” (1959) só foi viabilizado graças a um concurso de glamour girl. Com o cheque que recebeu por ter vencido a edição do evento da sociedade soteropolitana da época, Helena Ignez, atriz do filme, o repassou para seu então namorado, o diretor. “O abismo” (1977), longa de Rogério Sganzerla (1946-2004) estrelado por Norma Bengell, só existe porque Helena Ignez vendeu um apartamento que tinha em Salvador para financiar a produção.
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Em sua juventude na Bahia, Helena estudou direito e integrou a alta sociedade local – chegou até a ser colunista social. Abandonou tudo para abraçar o teatro em um período em que a cultura baiana estava em alta, com a presença de professores estrangeiros. Foi no final dos anos 1950 que conheceu e se envolveu com Glauber.
CLÁSSICOS
Narrado em primeira pessoa e obedecendo a cronologia, “A mulher da luz própria”, no entanto, foge do convencionalismo pela personagem que aborda e pelas imagens que apresenta. Com um vasto material disponível – dos filmes clássicos de que participou, como “O assalto ao trem pagador” (1962), “O padre e a moça” (1966), “O Bandido da Luz Vermelha” (1968), “A mulher de todos” (1970), a imagens raras, familiares –, o filme acompanha a trajetória de Helena até a atualidade.
Durante um ano e meio, Sinai rodou imagens da mãe para o filme, no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Salvador. Nesse período, captou a narração de Helena. “Eu não queria que tivesse um tom de entrevista, mas de pensamento”, conta ela, admitindo que o processo não foi fácil. “Como o áudio foi gravado em vários ambientes, eu tinha certa preocupação de que não ficasse integrado. Foi bastante trabalhado na edição, mas ficou legal, pois tem gente que acha que mamãe gravou tudo de uma vez.”
Foi também cansativo para Helena relembrar tanta coisa. “Houve momentos difíceis de ela falar, como a perda da guarda da Paloma (após uma difícil separação de Glauber)”, comenta Sinai, que, como conhecia bem as histórias desde criança, sabia os caminhos que iria percorrer.
Ela procurou ainda material raro, como o filme “O grito da terra” (1964), de Olney São Paulo (1936-1978), cineasta perseguido pela ditadura. “Esse filme estava desaparecido no Brasil e acaba ligando com outra história pouco conhecida dele, que é seu envolvimento com as ligas camponesas.”
Já um casal, Helena e Sganzerla partiram para o exílio em Londres, em 1970, com o recrudescimento da ditadura no Brasil. O frio, Helena comenta, a incomodava sobremaneira, tanto que os dois rumaram para o Marrocos.
O filme recupera imagens no deserto do Saara de um filme que Sganzerla nunca terminou. No retorno ao país, já em 1972, os dois foram para Salvador, onde viveram um período discretamente. Há várias imagens de Helena grávida de Sinai no mar.
“Priorizei material em película para que as imagens tivessem qualidade. E também tive o cuidado para que o filme não virasse uma coisa pessoal, mas que ele tivesse uma história que se relacionasse com o cinema brasileiro”, diz Sinai.
A produção demandou ainda recuperação de material de época. “Telecinei (converteu filmes em película para vídeo) alguns filmes do meu pai, o que foi importante para a preservação, já que hoje enfrentamos toda essa questão com a Cinemateca Brasileira”, acrescenta a diretora.
Ainda que atuando como atriz e eventualmente como produtora, Helena só abraçou a direção depois da morte de Sganzerla. Em 15 anos, dirigiu 10 filmes, entre curtas e longas. Revisitou o maior clássico do marido na continuação “Luz nas trevas: A volta do Bandido da Luz Vermelha” (2010).
RECONHECIMENTO
“Acho que o cinema lhe deu um reconhecimento, ainda que tardio, de certa forma. A primeira homenagem que recebeu, o que me surpreendeu, foi em 2006, na Suíça, quando exibiram todos os filmes dela, com cópias feitas para aquela mostra”, conta Sinai. A experiência, diz, mexeu com ela. “Assistir, lá fora, por exemplo, ‘Sem essa, aranha’ com cinema cheio, um filme que nunca tinha visto no Brasil, deu uma mostra desse reconhecimento. Meu pai já não teve, pegou períodos de muita dificuldade.”
Mesmo que esteja envolvida com cinema por causa da família, Sinai demorou a se assumir diretora. Formada em musicoterapia, trabalhou com crianças autistas. Foram a doença e a morte de Sganzerla – em decorrência de um câncer no cérebro – que a levaram a se envolver mais proximamente com o trabalho.
“Quando meu pai ficou doente, eu senti necessidade de que ele continuasse vivo de outra forma. Então cuidei dos filmes para que não estragassem, para que outras pessoas os vissem. Foi minha forma de sublimar a partida dele.”
Além de atuar como produtora dos filmes de Helena, Sinai já dirigiu o documentário “O desmonte do monte” (2018), sobre o processo de aniquilamento sofrido pelo Morro do Castelo, local de fundação da cidade do Rio de Janeiro, onde mora. Está finalizando outro longa documental, “Praia da Saudade”, também um filme-denúncia que lida com memória e destruição. Já Helena, que vive hoje sozinha em São Paulo, continua na ativa. Depois de lançar “Fakir” (2019), seu mais recente filme, ela agora escreve o roteiro de um novo longa.
“A MULHER DA LUZ PRÓPRIA”
Documentário de Sinai Sganzerla.
Estreia nesta quarta (14/07), às 22h30, no canal Curta! e no Curtaon!, no Now. Reprises: 15/07 (2h30 e 16h30); 16/07 (10h30); 17/07 (14h40)
FILMOGRAFIA DISPONÍVEL
A plataforma SPcineplay (spcineplay.com.br) tem disponíveis sete filmes dirigidos por Helena Ignez. São eles os longas “Canção de Baal” (2008), “Luz nas trevas: A volta do Bandido da Luz Vermelha” (2010) e “Feio, eu?” (2013), e os curtas “Reinvenção da rua” (2003), “A miss e o dinossauro” (2005), “Poder dos afetos” (2013) e “Ossos” (2014). Seu trabalho como atriz pode ser visto na seleção dedicada a Rogério Sganzerla na mesma plataforma, com os filmes “O Bandido da Luz Vermelha” (1968), “Sem essa, aranha” (1970), “Copacabana mon amour” (1970), entre outros. O acesso aos filmes é gratuito.