O Festival de Cannes, na França, chega neste sábado (17/07) ao fim de sua 74ª edição, aquela em que o mais badalado e prestigioso festival de cinema do mundo buscou mostrar que, apesar da pandemia, a indústria cinematográfica sobrevive.
Depois da edição mais recente, em 2019 (no ano passado, o festival foi cancelado em virtude da pandemia do novo coronavírus), que abriu caminho para que “Parasita”, de Bong Joon Ho, se tornasse uma força global de público e crítica, o resultado de hoje poderá (ou não) ratificar o caminho da renovação, tão necessário nestes tempos.
A premiação, a partir das 19h15 (14h15 no horário de Brasília, com transmissão pelo canal do YouTube do festival), poderá ter brasileiros. Entre os curtas-metragens, que fique claro, já que nenhum longa nacional foi selecionado para a disputa principal do evento. O curta paulista “Céu de agosto”, de Jasmin Tenucci, e o potiguar “Sideral”, de Carlos Segundo, competem pela Palma de Ouro.
Na quinta-feira (15/07), o curta “Cantareira”, do paulista Rodrigo Ribeyro, ficou em terceiro lugar na mostra Cinéfondation, dedicada a estudantes de cinema. “A representatividade desse prêmio é o que mais importa, principalmente em se tratando de uma competição entre filmes majoritariamente europeus ou oriundos de outros países desenvolvidos”, disse ele.
A história, ficcional, tem relação com a própria vivência do diretor. Ribeyro, assim como Bento, seu personagem, deixou a Serra da Cantareira para estudar e trabalhar em São Paulo. Pronto há um ano, o curta foi enviado para alguns festivais brasileiros, sem sucesso. Cannes foi sua primeira seleção.
Entre os longas da competição oficial pela Palma de Ouro, só há uma certeza: a imprevisibilidade da decisão do júri, presidido pelo cineasta Spike Lee. Ele sinalizou, no entanto, que as escolhas deverão ter uma forte carga política.
Vinte e quatro títulos estão na corrida. Até este ponto, há alguns sinais, que poderão ter sido (ou não) observados pelos jurados. “A crônica francesa”, do cineasta americano Wes Anderson, que homenageia o jornalismo, tornou-se um queridinho da crítica.
Foi aplaudidíssimo após sua exibição oficial,que reuniu um elenco de luxo – Bill Murray, Tilda Swinton, Adrien Brody, Owen Wilson, Timothée Chalamet e Benicio del Toro. A atriz Léa Seydoux, que testou positivo para a COVID-19, não foi ao festival (sua ausência foi mais do que sentida, já que ela está em outros três filmes exibidos em Cannes). O longa tem a estética melancólica e sofisticada que caracteriza a obra de Anderson. É composto por quatro capítulos e se passa em uma cidade francesa fictícia, em meados do século 20.
Outro filme bem cotado é “Memória”. Filmado na Colômbia, coproduzido pelo México, protagonizado pela britânica Tilda Swinton e dirigido pelo tailandês Apichatpong Weerasethakul, Palma de Ouro em 2010 por "Tio Boonmee, que pode recordar suas vidas passadas".
É o primeiro título do cineasta rodado fora da Tailândia, em inglês e espanhol. A história se concentra em uma cultivadora de orquídeas que visita sua irmã doente em Bogotá. Alguns sons estranhos, como estrondos, que apenas ela escuta, impedem-na de descansar. Começa, então, uma busca para encontrar a origem do fenômeno misterioso.
A crítica especializada também se encantou com o finlandês “Compartment nº 6”, de Juho Kuosmanen, que acompanha a história uma estudante finlandesa e um mineiro russo que dividem uma cabine de segunda classe durante uma longa viagem de trem, logo após o fim da União Soviética.
Iraniano no páreo
Figura recorrente em Cannes, o iraniano Asghar Farhadi está na disputa com “A hero”, que vem sendo apontado como seu melhor filme desde seu reconhecimento no mercado internacional com “A separação” (2011, Oscar de melhor filme estrangeiro). Na história, um homem descobre uma bolsa de dinheiro que o leva a uma série de complicações e dilemas morais.
Quatro dos 24 longas na disputa principal são dirigidos por mulheres. O mais ruidoso deles foi “Titane”, da francesa Julia Ducournau. Filme-sensação do festival, foi recebido com entusiasmo pela crítica, que gostou de sua estranheza. O público dividiu-se. Durante a primeira sessão do filme, cerca de 20 espectadores se sentiram mal e saíram da sala. Definida como chocante e imprevisível, a narrativa segue uma jovem serial killer que se sente atraída por carros depois de ter um metal inserido em sua cabeça quando criança.
Brasileiros protestam na Croisette
Já são cinco anos desde que a equipe de “Aquarius” fez um protesto político no tapete vermelho do Festival de Cannes. Naquele ano, 2016, concorrendo à Palma de Ouro, o cineasta Kleber Mendonça Filho, a atriz Sonia Braga e outros integrantes da equipe do longa denunciaram “um golpe” em curso no Brasil, referindo-se ao processo de impeachment de Dilma Rousseff (PT).
Desde então, manifestações políticas têm marcado a participação brasileira em festivais. Todas elas fazem menção à ascensão ao poder de Jair Bolsonaro e ao impacto de sua gestão no setor cultural, com o desmantelamento da Agência Nacional do Cinema (Ancine) e o esvaziamento da Cinemateca Brasileira. Isso tudo antes da pandemia, que só tornou o cenário brasileiro mais sombrio.
Cannes, como primeiro e maior palco cinematográfico desde o início da crise sanitária, assistiu a diferentes manifestações de equipes brasileiras. A primeira delas foi na sexta retrasada (9/07), após a sessão de “O marinheiro das montanhas”, de Karim Aïnouz. No final da exibição, os brasileiros que estavam no festival exibiram uma faixa vermelha com os dizeres “Brasil: 530 mil mortos. Fora, gângster genocida”.
Dois dias mais tarde, a equipe de "Medusa", que participa da Quinzena dos Realizadores, seção paralela dedicada a novos realizadores, exibiu para a imprensa no tapete vermelho a seguinte mensagem, em inglês: "533 mil morreram no Brasil de uma doença para a qual já existe vacina”. É o segundo longa da carioca Anita Rocha da Silveira e foi criado a partir dos acontecimentos no Brasil pós-2015.
A cineasta, que usou em Cannes camiseta com a frase “Vacina sim; ele não”, deu início ao projeto ao perceber a crescente onda de conservadorismo que chegou ao país. Sua protagonista é uma jovem de uma igreja neopentecostal da qual é exigida uma “perfeição”, custe o que custar.
O filme sai de Cannes com uma grande vitória. “Medusa” foi comprado pela distribuidora francesa Wayna Pitch, que deverá lançá-lo com um número entre 100 e 150 cópias, tendo o público jovem como alvo.
Os filmes de Anita e Aïnouz (este fora de competição) foram os únicos longas brasileiros selecionados para Cannes. É uma participação tímida, levando-se em conta a presença brasileira em grandes festivais internacionais há meros cinco anos, conforme comentou Kleber Mendonça Filho, que integrou o júri oficial do festival.
“Quando, em 2019, tivemos aqui ‘Bacurau’ e a ‘A vida invisível’ e no Festival de Berlim tivemos 18 filmes, estava muito claro que essa política de apoio ao cinema brasileiro finalmente mostrava os frutos. É irônico que a sabotagem começou no clímax de um bom momento.”
UM CERTO OLHAR
PREMIA RUSSO
O longa russo “Razzhimaya Kulaki" (Punhos cerrados), de Kira Kovalenko, venceu a mostra Um Certo Olhar. O resultado foi anunciado nessa sexta-feira (16/07). O filme aborda a tentativa de uma jovem de escapar de sua família e de sua cidade, marcada pela mineração. O júri presidido pela diretora britânica Andrea Arnold destacou a “bravura” dos longas em disputa e afirmou que eles suscitaram “vigorosos debates”.