Jornal Estado de Minas

LIVRO

Especial 'Diário da quarentena' ganha edição em livro


Todos os números ligados à pandemia são assustadores. A começar pelos mortos, que, só no Brasil, ultrapassam meio milhão. Se colocarmos na conta o número de vezes em que as ofertas de venda de vacina foram recusadas pelo governo federal, aí a indignação cresce em progressão geométrica. 





Na página 3 deste caderno Cultura, a pandemia também deixou sua marca em números. Em oito meses, de março a outubro do ano passado, sem faltar nem um dia sequer, 210 personalidades, entre músicos, atores, diretores, dramaturgos, estudantes e empresários, se uniram nas crônicas do "Diário da Quarentena", edição especial da Coluna Hit. Com o tempo e sem pretensão, o espaço se tornou um registro histórico e importante de dois longos semestres do ano passado. 

Novamente, os números chamam a atenção. Sete meses depois do fim do diário, mais de 40 e-mails trocados com a Astrolábio Edições até o ‘OK’ com o arquivo final dos textos e o projeto gráfico da Greco Design, o Diário chega às livrarias, rebatizado como  “Diálogos da pandemia”. 



Com o selo Astrolábio Edições, em 256 páginas estão reunidas 40 crônicas com temas que variam das surpresas e descobertas da vida em isolamento à forma de distrair os filhos trancados em casa, sem esquecer  a preocupação com os amigos infectados pelo vírus e, claro, o humor com a forma de encarar as tarefas domésticas. Nada escapou ao olhar dos meus 210 autores favoritos.





HOME OFFICE 

A memória daquela segunda-feira, 16 de março de 2020, último dia em que pisamos no prédio da Avenida Getúlio Vargas, onde fica a sede do Estado de Minas, mantém-se fresca. Com a pandemia decretada no país, as empresas se organizaram para o então desconhecido home office. Na Redação não foi diferente.

Em uma reunião do setor, a editora deste caderno, Silvana Arantes, nos colocou a par da situação. Enquanto ela falava, minha preocupação era entender como me organizar e me preparar para ligar meu computador em casa. Afinal, o espaço que ocupo nesta página 3 cobre, há ininterruptos 17 anos, festas e eventos culturais que, naquela altura do campeonato, já estavam sendo cancelados, um depois do outro.

O jornalista Helvécio Carlos convidou 210 personalidades para escrever o "Diário da Quarentena" no espaço de sua coluna no Estado de Minas, a partir do início da pandemia (foto: Flávio de Castro/ Toujours Fotografia/Divulgação)


Para aliviar o estresse, um café foi a salvação. Entre um gole e outro, um telefonema e bingo: que tal uma sequência de cartas escritas de um amigo para outro com as emoções provocadas por uma situação que ninguém tinha noção do que se tratava? OK. Legal para os próximos oito dias, até que voltemos ao normal, pensei, em um momento da mais pura ingenuidade.





Uma semana depois, a certeza que tínhamos era de que não haveria data certa de volta ao trabalho presencial. Adeus almoços corridos nos restaurantes do outro lado da Getúlio Vargas, adeus aos nossos bolões lotéricos na Redação e, o mais lamentável, adeus ao dia a dia com colegas com quem, nos últimos anos, pela jornada de trabalho, convivemos mais tempo do que com membros das nossas famílias.   
 
O formato de cartas não rendeu mais de duas. Limitava muito a relação dos convidados, que teriam que, obrigatoriamente, ter uma certa relação de intimidade exigida pelas correspondências. Foi quando veio, em um estalo, a ideia das crônicas.  

Os números da pandemia continuam assustadores. Estamos há 15 meses, vejam que loucura, sem pôr os pés na Redação. Sem ver os colegas, sem as reuniões de pauta, sem as piadas, as brincadeiras, sem ver, mesmo que de soslaio, os jogos ou o noticiário pelos televisores espalhados pela Redação. 

Tranquei o apartamento em Belo Horizonte, peguei a estrada e, de volta à casa de minha mãe, em Sete Lagoas, abri um arquivo no Excell. Ali comecei a montar minha tabela com os nomes de convidados e as datas para publicação dos textos. Mas eu queria mais. Já que a solução para a pandemia era esperar passar, o jeito era incrementar o Diário. Que tal dar vozes aos textos? E por que não levar o que estava no papel para o vídeo? Com todo mundo naquela época em casa, a diversão passava obrigatoriamente pelas telas do computador e do celular.   

Funcionou, e muito bem, da seguinte forma: o texto publicado seria lido pelo autor da crônica do dia seguinte. Legal? Super! Mas eu ainda tinha a certeza de que poderia colocar a cereja no bolo. Foi aí que veio a ideia de convidar atores para participações especialíssimas, dando a sua leitura para as crônicas. 

Os textos de Edmundo Novais, do cartunista Lor, de Mauro Alvim e de Eduardo Moreira, lidos, respectivamente, por Antônio Fagundes, Jefferson Schredoer e Angela Vieira e Dira Paes, ganharam um destaque ainda maior.

Para o dramaturgo Edmundo Novaes, o livro é memorial. “Tem uma metodologia excelentemente bem-elaborada”, disse, em referência à ideia de juntar pessoas para falar desse momento que ainda estamos vivendo, sem precedentes na história. “Mas, a partir dessa metodologia, a ideia foi subvertida pela vivência, pelo memorial, que oferece à ideia aspectos humanos profundos de inegável qualidade narrativa, que é definida pelo próprio autor.”





Sobre a leitura de seu texto, “Nem se fosse um filme”, feita por Antonio Fagundes, Edmundo diz que, além de surpreendente, foi emocionante. “Fagundes é um colosso, um portento.”

Mauro Alvim acrescenta: “De fato, é um período histórico que não deve ser esquecido para que o povo veja o quanto somos vulneráveis. Enfim, de que valem os preconceitos, o esnobismo, o orgulho, sabendo que vivemos como que num campo minado? Espero que o povo tire a conclusão e jamais se esqueça de que ninguém é melhor do que ninguém”, afirma o autor de “Bom dia”, crônica que mostra um casal às turras logo no café da manhã. “O livro traz um recorte muito relevante de um momento bem singular da nossa história. As crônicas ali reunidas traduzem como percebemos e lidamos com este período de incertezas pelo viés da arte, sobre o papel da arte em tempos tão estranhos”, afirma o rapper Roger Deff, autor do texto “Arte e palavra nos dias de isolamento”. “E o mais interessante é saber que são relatos feitos bem no olho do furacão, quando ninguém sabia como nós, enquanto sociedade, reagiríamos a tudo o que estava acontecendo. Agora há alguma luz no horizonte, e várias leituras poderão ser feitas a distância daquele turbilhão, mas as impressões registradas por vários olhares no momento são contribuições muito importantes.”

LER É VIVER 

Parte da renda obtida com as vendas do livro “Diálogos da pandemia” será destinada ao projeto Ler é Viver, que neste 2021 completa 15 anos. Ação do Instituto Gil Nogueira (IGN) para o combate ao analfabetismo funcional, o projeto já atingiu 63 mil alunos e distribuiu 1,3 milhão de livros em 60 escolas das redes pública estadual e municipal. 

“A leitura vem antes do aprendizado”, afirma Patrícia Nogueira, presidente do Instituto Gil Nogueira.

Antes da pandemia, as escolas selecionadas pelo IGN recebiam livros entregues aos alunos, que deveriam se comprometer a ler e interpretar as obras durante o ano. Os melhores eram premiados com medalhas.





Patrícia cita que algumas histórias dão orgulho ao projeto. Como o ano em que um estudante foi salvo de ser expulso da escola graças ao apoio de uma professora, que pediu um prazo à direção para tentar ajudá-lo. “E foi uma surpresa quando o nome dele foi anunciado com o primeiro lugar e medalha de ouro. Todos que estavam na escola choraram de emoção”, recorda Patrícia. 

Para ela, o projeto, além de oferecer autoestima às crianças, também dá aos estudantes de escolas públicas acesso a bons livros. Todo o trabalho é acompanhado dentro de um critério rigoroso de avaliação.  Com a pandemia, as ações foram virtuais, e a premiação dos três colocados será nesta terça-feira (20/07), na sede do IGN. 

“Diálogos da pandemia”

Organização: Helvécio Carlos
Astrolábio Edições (256 págs.) 
Coletânea de crônicas de 39 autores Ilustrações: Lélis e Quinho 
R$ 35,10

audima