Entre as muitas qualidades de Ney Matogrosso não está a de contar histórias. “Ele não se emociona com o passado, acha tudo um pouco normal. Não vê ele mesmo como um acontecimento. É um hippie mesmo”, afirma Julio Maria. Durante cinco anos, o jornalista teve que desfiar um novelo envolvido em uma couraça, “fruto da postura e do respeito que ele dá para ele mesmo”.
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Ney Matogrosso abre a segunda temporada de lives da Janela UBCDuda Brack lança clipe com Ney Matogrosso, 'dono' de boateVida e carreira de Ney Matogrosso são retratadas em documentárioPodcast 'Caçadores de histórias' revela os bastidores de biografiasLivro de Julliany Mucury analisa o cancionista Renato RussoCom a expertise de quem cobre diariamente o cenário musical há 25 anos – há 15 é repórter e crítico musical do jornal O Estado de S.Paulo –, Julio chegou a Ney por dois motivos. Em 2015, depois de concluir sua primeira biografia – “Nada será como antes”, sobre Elis Regina – ele queria escrever sobre alguém que lhe desse liberdade e não escondesse as coisas. “Qual artista vivo seria capaz de fazer isso? Não tem muitos”, observa. A sinceridade que Ney demonstrou quando foi entrevistado para a biografia de Elis pesou na escolha do biógrafo.
RESISTÊNCIA
“Entendi também que a história do Ney é de resistência. Em 2015, assistimos ao crescimento da homofobia, da ultradireita retrógrada, ou seja, tudo contra que ele havia lutado”, assinala o autor. A data do lançamento coincide com a chegada do cantor aos 80 anos – em 1º de agosto próximo.O livro é aberto pela enésima briga da família Souza Pereira. No final da década de 1950, em Bela Vista, nos confins do Mato Grosso do Sul, próximo à fronteira com o Paraguai, o Sargento Matto Grosso vivia às turras com o filho Ney. O pai já havia notado que o filho de 17 anos era diferente. Um dia, cansado dos abusos paternos, Ney saiu de casa, deixando estupefata a mãe, Beíta, mulher de personalidade forte – hoje, lúcida aos 99 anos, vive no sítio do filho, na Serra do Mato Grosso, região de Saquarema, interior fluminense.
Ney voltaria para casa uma vez, mas a quebra do vínculo paterno foi definitiva. Os dois nunca foram próximos – na primeira vez que o viu no palco, Sargento Matto Grosso estava sob o efeito de calmantes que as filhas providenciaram. Até se tornar Ney Matogrosso, no início da década de 1970, Ney de Souza Pereira viveu no Rio de Janeiro, em Brasília e em São Paulo, onde estreou como cantor com o Secos & Molhados.
TRANSGRESSÕES
Ingressou na Aeronáutica, onde ficou dois anos, como forma de sobrevivência. Quando viu que precisava desafiar a memória de Ney – para a escrita do livro foram sete longas entrevistas presenciais, além de conversas diárias pelo telefone nos primeiros seis meses da pandemia –, Julio Maria foi atrás de documentos. Descobriu que ele tinha, em sua ficha de ocorrência, transgressões. “Eu levava o documento, e ele se lembrava e contava. Logo vi que não poderia me prender só à narrativa do Ney.”O biógrafo entrevistou cerca de 200 pessoas – de familiares a colegas de profissão, como Rita Lee, Paulo Ricardo, Simone, Caetano Veloso; além de produtores, empresários e jornalistas. Em Brasília, onde trabalhou em um hospital, Ney descobriu o teatro. Também logo começou a trabalhar com adereços – criativo, se sustentou durante algum tempo vendendo artesanato. A música chegou aos 31 anos – naquela idade, ele nunca tinha comprado um LP ou ido a um show de rock.
A ausência de referências chama a atenção em sua trajetória e talvez explique sua originalidade. “Todo mundo que virou cantor, compositor, tinha referências que alimentavam seus sonhos. Caetano e Gil ouviram João Gilberto e ficaram estonteados; Elis queria ser Ângela Maria. O Ney não teve isso. Quando ele aparece daquela forma com o Secos & Molhados, não queria ser nada, não tinha conhecimento de algo da carreira artística para seguir. E a formação de um artista aos 31 anos é algo muito particular”, afirma Julio.
A partir do momento em que Ney se firma na música, a narrativa entremeia o processo de criação de seus discos e shows – e os reveses que teve ao longo da carreira – com a vida pessoal. Ele transou com quem quis, homens e mulheres, e teve três grandes amores, todos mortos em decorrência da Aids: Zé, Cazuza e Marco de Maria.
PAIXÃO
Zé foi a primeira paixão de Ney no Rio de Janeiro. Filho de família abastada da alta sociedade carioca, nunca foi identificado publicamente, tanto que aparece sem sobrenome. Cazuza foi uma história muito rápida – o namoro durou somente três meses – mas a amizade, na vida e na arte, permaneceu até a morte do cantor e compositor, em 1990. Quando ele já estava bem doente, Ney ia à sua casa só para lhe fazer massagem nos pés.Marco de Maria foi a única pessoa com quem morou junto. “Tinha que decifrar quem era esse cara, e o amor dos dois é muito bonito”, comenta Julio. O biógrafo encontrou-se com os irmãos de Marco e obteve depoimentos muito impactantes. “A gente está falando de um tempo em que quem contraía Aids recebia o decreto de uma vida solitária. O Ney, desde o começo, disse que ficaria com ele até o fim.”
Os dois estavam separados quando veio o diagnóstico positivo. Ney não só levou Marco de volta para sua casa, como separou e equipou um quarto para ele. A família de Marco chegou a tentar lhe dar dinheiro para ajudar no tratamento, mas ele se negou a aceitar.
“Muitas vezes, o Ney teve que continuar a fazer shows para pagar o tratamento, que era caríssimo. Isso foi lembrado em meio a lágrimas pela família. Para mim, foi uma lição de caráter. É também uma lição para muita gente que ainda duvida de que homens podem amar outros homens”, diz Julio.
VACINA
A biografia segue até os dias atuais. Julio colocou um ponto no final no texto em 1º de março deste ano, quando Ney tomou a primeira dose da vacina AstraZeneca. Terminada a escrita, o biógrafo foi atrás do biografado. “Lá atrás, quando falei para o Ney da biografia, ele disse que não queria ler antes que ela saísse. Pois liguei e disse que queria que ele lesse para ver se havia alguma coisa errada, no sentido de uma fase, um ano, um lugar. Ele foi muito profissional, pegou uma canetinha, fez anotações pontuais, mas sem tirar nada de contexto ou tentar amenizar.”E gostou do que leu? Julio comenta que houve um silêncio após a entrega dos originais. No quinto dia, pegou o telefone e ligou. “Ney disse que um dos pontos que o incomodaram foi que não sabia que o tinham chamado de ‘viado’ tantas vezes.” Chacrinha foi um de seus mais agressivos críticos no início da carreira. Na imprensa carioca, escreveu que “Ney Mato Fino” deveria ser “proibido pela censura e pelo Juizado de Menores” porque era “rebolativo, erótico e muito do bichânico”.
“Fico feliz que o livro saia agora, em meio a essa ideologia do mal que se instalou no país”, afirma Julio, reafirmando que todo o processo foi “sem patrulhamento, mimimi ou egolatria do artista”.
LIVES COM O AUTOR
Várias lives vão marcar o lançamento da biografia. Na próxima quarta (28/07), às 19h, Julio Maria participa de debate virtual no canal do YouTube da Livraria da Travessa. Em 5 de agosto, às 19h, haverá live no Instagram da Livraria da Vila. E em 20 de agosto, às 20h, o biógrafo se encontra com Ney Matogrosso no palco do teatro Sesc Pinheiros. A transmissão será pelo YouTube do próprio teatro.
NOVO DISCO
Em 1º de agosto, dia de seus 80 anos, Ney lança as primeiras quatro faixas de seu novo álbum, “Nu com a minha música”, canção de Caetano Veloso gravada pela primeira vez na voz de Ney. Além dessa, o repertório inclui “Gita” (Raul Seixas), “Unicórnio” (Silvio Rodriguez) e “Se não for amor, eu cegue” (Lenine e Lula Queiroga). O disco completo, com 12 canções, será lançado até o fim do ano.
SHOW EM BH
Estão à venda os ingressos para o Breve Festival 2022, que será realizado em 9 de abril, na Esplanada do Mineirão. Ney Matogrosso será uma das atrações do evento, ao lado de Elba Ramalho, Alceu Valença e Geraldo Azevedo (com O Grande Encontro), Gal Costa, Racionais MCs, Djonga, Pitty, entre outros. Será a primeira edição do festival desde 2019. Ingressos: R$ 100 a R$ 270. À venda no sympla.com.br/brevefestival.
“NEY MATOGROSSO, A BIOGRAFIA”
• Julio Maria
• Companhia das Letras (512 págs)
• R$ 89,90 (livro) e R$ 39,90 (e-book)