Jornal Estado de Minas

AUDIOVISUAL

Paralisado pela pandemia e a falta de apoio, o cinema pede socorro

Mais recente longa-metragem de Helvécio Ratton, “O lodo” foi rodado em Belo Horizonte em 2019, participou de festivais em 2020 e teve seu lançamento adiado mais de uma vez em decorrência da pandemia. Agora, quando as salas estão reabrindo, ele está impedido de entrar em cartaz.





Lançado em 2019 no Festival de Cinema de Brasília, o documentário “Eu, um outro”, de Silvia Godinho, também não chegou às salas no período previsto em virtude da crise sanitária. E também não pode vir a público neste momento.

As histórias se repetem, seja com diretores, produtores, roteiristas, atores, técnicos, abrangendo a extensa rede de profissionais que atuam no setor audiovisual. Está tudo parado no meio de entraves burocráticos e perguntas sem respostas. Verbas aprovadas por meio de editais e concursos públicos que fazem a máquina do cinema girar simplesmente não saem. A pandemia não foi o início da crise, só a intensificou.

Projeto de autoria do senador Paulo Rocha (PT/PA) em tramitação no Senado Federal, a chamada Lei Paulo Gustavo (Projeto de Lei 73/2021) é vista como a tábua de salvação. Ela prevê injetar R$ 4,4 bilhões do orçamento no setor cultural. Com a proposta de cunho emergencial, os recursos previstos no Fundo Nacional de Cultura (FNC) não poderiam ser utilizados para outros fins.





O documentário 'Eu, um outro', de Silvia Godinho, pronto desde 2019, também está com a estreia travada por questões de ordem burocrática (foto: Oficina de Criação/Divulgação )

ORÇAMENTO 


A Lei Paulo Gustavo, que homenageia o ator morto em maio, não tem nenhuma relação com a Lei Rouanet. Ela seria viabilizada via FNC, que foi criado em 1986, cinco anos antes da Rouanet. Esta concede incentivos fiscais para empresas que patrocinam eventos culturais. Já o FNC prevê o repasse de recursos do orçamento diretamente a projetos culturais, por meio de editais.

“Achamos que, com o calendário andando bem, a lei poderá ser regulamentada pelo governo federal entre outubro e novembro. É ela que vai salvar a produção audiovisual brasileira para que tenhamos novos filmes em dois, três anos, nos festivais, que novas séries de TV cheguem às plataformas de streaming”, afirma o diretor Guilherme Fiúza, presidente do Sindicato da Indústria do Audiovisual de Minas Gerais.

Em 2018, em seu auge, o setor audiovisual empregava mais de 300 mil pessoas direta e indiretamente no país. Movimentava R$ 24 bilhões, o equivalente a 0,46% do Produto Interno Bruto (PIB), superando inclusive o da indústria farmacêutica.





“A situação, de três anos para cá, se agrava a cada dia. A produção está paralisada, e as produtoras estão encolhendo por serem impedidas de trabalhar”, afirma Simone Matos, produtora e diretora da Quimera Filmes, que produz “O lodo”, e diretora-executiva e institucional do Sindav-MG.

Até três anos atrás vista como símbolo da expansão da chamada economia criativa, a Agência Nacional de Cinema (Ancine), órgão que regula e fomenta o setor, passou a sofrer um desmonte. “A agência veio se arrastando no final do governo Temer (2016-2018), o que acabou se consolidando no governo Bolsonaro (2019). Com a paralisação da Ancine, não há condições de buscar financiamento para novos projetos. Aí vem a pandemia e deixa o mercado de ponta-cabeça. Quem tinha filme para lançar não lançou, não filmou, não produziu”, diz Fiuza, ele mesmo aguardando há dois anos a liberação de uma verba da Ancine para começar a produzir a série de animação “Cosmo, o cosmonauta”.

O entrave federal também se reflete no nível estadual, afirmam os profissionais. “Minas sempre teve uma importância cultural muito grande no Brasil e, atualmente, não tem uma política à altura. Desde que este governo tomou posse, tivemos uma sequência de secretários e não aconteceu nada. A Secretaria de Estado de Cultura e Turismo (Secult) não disse a que veio. Não há um edital de fomento à produção, então os projetos não se viabilizam”, afirma Helvécio Ratton. 





O cineasta diz que uma “falta de diálogo do estado” pode repercutir, caso a Lei Paulo Gustavo seja aprovada. “Ali são recursos que, por direito, pertencem à própria cultura audiovisual. E para você construir uma aplicação da lei, tem que dialogar com o setor. Caso o projeto seja aprovado, me preocupa a maneira como será feita a destinação dos recursos.”

O diretor Guilherme Fiúza aguarda há dois anos a liberação de verba para produzir a série 'Cosmo, o cosmonauta' (foto: Solo Filmes/Divulgação )

EDITAIS 

Silvia Godinho tem opinião semelhante. “O governo (estadual) parece confundir cultura com turismo, que são conceitos distintos. Está pensando editais que não contemplam a necessidade do setor. Tenho medo de que isso se reflita nas decisões da Lei Paulo Gustavo”, diz ela. Silvia referiu-se aos editais FEC 03/2021 e FEC 04/2021, que, lançados em maio passado, provocaram indignação de profissionais do setor por exigir temas como a gastronomia e a cultura popular para a produção de curtas de baixo orçamento.

“O lodo”, que será distribuído pela Cineart, também um grupo mineiro, aguarda a liberação de verba para seu lançamento. Os recursos para esse fim foram aprovados em edital de 2019 de Coinvestimentos Regionais realizado no Polo Audiovisual da Zona da Mata, mas até hoje a Ancine não liberou os recursos, segundo os produtores. 





Já “Eu, um outro” está em compasso de espera de um retorno da agência reguladora para distribuir o filme. “Além disso, ele foi feito em parceria com o estado. Enviei há dois meses um ofício solicitando uma carta de anuência para lançá-lo em plataformas digitais em vez de salas de cinema. A posição que deram é de que, como não existe uma diretoria de audiovisual no estado, não tem quem assine o documento. Falo com tranquilidade que o audiovisual mineiro está em seu pior momento dos últimos 30 anos”, diz Silvia.

ERRO DE CÁLCULO 

As histórias se repetem em outros segmentos do setor. Fundadora da Le Petit, produtora que há 21 anos realiza a mostra Curta-Circuito, Daniela Fernandes foi pega de surpresa na última semana, quando recebeu um retorno da Secult. O documento enviado aos vencedores do edital Arte Salva 04 – Exibe Minas (2020) informava que houve um erro de cálculo e que o valor da premiação (via Fundo Estadual de Cultural) seria menor. 

Além disso, um atraso no cronograma vai fazer com que a verba saia somente em dezembro, seis meses após o planejado. “Só vou conseguir realizar o festival (em outubro, on-line, sobre música no cinema brasileiro) porque ele tem o apoio da Lei Municipal de Cultura. Mas tive que diminuí-lo. Se fosse só com os recursos do Exibe Minas, eu teria que cancelá-lo”, afirma Daniela. O prêmio do edital de 2020 será utilizado para a edição de 2022 do Curta-Circuito. 





Curadora e professora de cinema, Tatiana Carvalho, conselheira da Região Sudeste da Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro (Apan), comenta que a situação dos profissionais negros e indígenas é ainda pior. 

“Não são pessoas que estão em posições mais altas na hierarquia do mercado. Trabalham por projeto, estão na base da pirâmide em funções operacionais que dependem das atividades presenciais: assistentes de direção, de produção, figurino, alimentação, transporte, maquiagem. Então, foram absurdamente impactadas pela pandemia”, comenta.

Na opinião de Tatiana, a Secult poderia ter “feito muito mais” por esses trabalhadores. “O governo de Minas não tem nenhum levantamento robusto sobre raça, gênero ou nenhum marcador efetivo relacionado às ações do setor. O que há é um registro muito frágil a partir do que as pessoas voluntariamente preenchem nos formulários de inscrição para os editais, como o da Lei Aldir Blanc. Ou seja: o governo não produz dados para implementar políticas de ações afirmativas que sejam efetivas porque não tem informações para planejá-las.”





Para ela, é possível corrigir tal questão em futuros editais. “Se eles passarem a demandar autodeclaração – de raça, gênero e outros marcadores – o governo poderá produzir dados e, assim, desenvolver as ações com maior embasamento e eficácia.” Sobre o projeto de lei Paulo Gustavo, Tatiana afirma que é uma oportunidade para fazer a economia girar. “Mas temos que pensar também o que uma ação afirmativa pode trazer de efeito a médio e longo prazos, para que o setor seja efetivamente inclusivo.”

ENTENDA O PROJETO DE LEI

O que é a Lei Paulo Gustavo
De autoria do senador Paulo Rocha (PT/PA) e da bancada do partido no Senado, o Projeto de Lei 73/2021 prevê que a União repasse aos estados, Distrito Federal e municípios R$ 3,8 bilhões. Quase R$ 2,8 bilhões desse valor seriam destinados para o setor audiovisual, apoiando produções, salas de cinemas, cineclubes, mostras e festivais e ações de capacitação. O restante, R$ 1,065 bilhão, ficaria reservado para editais e chamadas públicas para apoio a projetos e iniciativas culturais.  

De onde vêm os recursos
Os recursos vêm do superávit financeiro do Fundo Nacional de Cultura (FNC). A previsão de R$ 2,8 bilhões se refere a fontes de recursos que foram alocados originalmente no Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) e cobrados da própria cadeia, devendo por lei (Lei 11.437/2006) ser direcionados somente para a área. Também estão previstos R$ 150 milhões de contrapartida de estados, DF e municípios e R$ 342 milhões desbloqueados do FNC na Lei Orçamentária Anual (LOA 2021), totalizando R$ 4,3 bilhões para auxiliar o setor cultural.

Novidades
A partir da experiência com a Lei Aldir Blanc, o projeto traz novas proposições. A desburocratização dos processos e o estabelecimento de um prazo mais extenso para a execução, com data de realização até dezembro de 2022 e prestação de contas da classe até agosto de 2023, estão em pauta. O projeto ainda prevê critérios ou cotas em benefício de mulheres, negros, indígenas e outras minorias, de acordo com sua realidade local.

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