A “trajetória biográfica e literária” de Ana Cecília Carvalho é o que o presidente da Academia Mineira de Letras (AML), Rogério Tavares, buscará traçar na conversa com a psicanalista e escritora mineira, que ele manterá nesta terça-feira (27/07), com transmissão pelo Instagram da Bienal Mineira do Livro, realizadora da série mensal de bate-papos literários.
“Desde ‘O livro dos registros’, que é a estreia dela na literatura, em 1975, até ‘O livro neurótico das receitas’, que é muito divertido, com capítulos como ‘A torta culpada de palmito’ e ‘Condensação e deslocamento do escondidinho’”, Tavares pretende dar atenção à obra da escritora, com ênfase em dois aspectos, conforme aponta: “a influência de uma família judaica e da psicanálise”.
Literatura e psicanálise são também temas da entrevista a seguir de Ana Cecília Carvalho ao Estado de Minas.
O tema do encontro desta noite será "A literatura de Ana Cecília Carvalho". Se você aceitasse o desafio de resumir em um parágrafo como é "a literatura de Ana Cecília Carvalho", como seria esse parágrafo?
O que escrevo costuma revelar o meu interesse pelo que vai dentro das pessoas, pelo que elas não se dão conta do que nelas acontece quando se relacionam umas com as outras. Na minha ficção, procuro dar uma forma escrita e compartilhável àquilo que, tal como imagino, age à nossa revelia e de um modo singular em cada um de nós.
As intenções “mal ditas”, as diversas formas de solidão, a catástrofe das maldades cotidianas, o alento dos pequenos encontros e dos gestos de consideração daqueles que nos restauram a esperança são algumas das linhas temáticas que frequentam a minha escrita. Procuro transmitir para o leitor algo do meu assombro diante do indizível da experiência humana.
As intenções “mal ditas”, as diversas formas de solidão, a catástrofe das maldades cotidianas, o alento dos pequenos encontros e dos gestos de consideração daqueles que nos restauram a esperança são algumas das linhas temáticas que frequentam a minha escrita. Procuro transmitir para o leitor algo do meu assombro diante do indizível da experiência humana.
Em sua Trilogia da Inquietude, especialmente em "Os Mesmos e os Outros: o livro dos ex", os personagens circulam num ambiente de viés quase tribal, em que aqueles vistos como diferentes tornam-se inimigos a combater, e nenhum dos "lados" consegue autorizar-se a menor possibilidade de compreensão e conciliação com "o outro". Já se disse que "as epidemias revelam e ampliam a nossa desordem social". Na sua avaliação, o quadro social que surge da pandemia do novo coronavírus dá a esse aspecto da sua ficção um contorno ainda mais próximo da realidade do que na data de seu lançamento (2018)?
Depois que a pandemia foi anunciada, em março de 2020, não demorei muito para perceber que havia uma certa semelhança entre o que estava acontecendo e o clima algo distópico de “Os Mesmos e os Outros: o livro dos ex” (Quixote %2b Do). Logo passamos a enfrentar uma crise sanitária sem precedentes, agravada por aqueles que pareciam ignorar que o coronavírus não tem “agenda” política e não se guia por preferências partidárias ou ideológicas. Desde então se tornaram estridentes as dissenções, os antagonismos, os conchavos e as formas maniqueístas e muito esquisitas de se lidar com a realidade da pandemia. Naquele momento notei que havia, no meu livro, uma espécie de percepção antecipada do que passamos a enfrentar desde então.
O que parece uma visão profética no livro é, na verdade, o resultado de anos observando a maneira como as pessoas se comportam. Sempre me chamou a atenção a maneira como o comportamento de uma pessoa muda quando ela passa a pertencer a um grupo, o que faz diminuir a chance de que ela continue a pensar com a própria cabeça e, como consequência, aumenta a probabilidade de ela vir a perder a própria identidade, a própria singularidade.
Aliás, é bem esta uma das situações descritas em “Os Mesmos e os Outros: o livro dos ex”: mudar de nome é a condição para alguém pertencer a um dos dois grupos (os Mesmos ou os Outros) que se digladiam sem que se saiba o motivo. Qualquer semelhança entre essa alusão e todas as formas de fascismo não é coincidência.
Aliás, é bem esta uma das situações descritas em “Os Mesmos e os Outros: o livro dos ex”: mudar de nome é a condição para alguém pertencer a um dos dois grupos (os Mesmos ou os Outros) que se digladiam sem que se saiba o motivo. Qualquer semelhança entre essa alusão e todas as formas de fascismo não é coincidência.
Em alguns casos, o enfrentamento da realidade passa a ser feito a partir de premissas que beiram as convicções mais delirantes. Tudo isso para dizer que eu não deveria me espantar sobre a maneira desastrosa como a pandemia tem sido enfrentada em muitas partes do mundo, incluindo o Brasil.
Se está correta a ideia de que as epidemias revelam e ampliam a desordem social, é porque elas trazem à tona um outro aspecto, que é a falta de solidariedade, a falta de consideração com o próximo, que se expressa, por exemplo, sob formas que vão desde a recusa à vacina (por razões que beiram a superstição e o pensamento mágico), até a negligência do representante de uma nação, que se recusa a cuidar da saúde do seu povo e se mostra indiferente, ao debochar das centenas de milhares de mortos em pouco mais de um ano.
Se está correta a ideia de que as epidemias revelam e ampliam a desordem social, é porque elas trazem à tona um outro aspecto, que é a falta de solidariedade, a falta de consideração com o próximo, que se expressa, por exemplo, sob formas que vão desde a recusa à vacina (por razões que beiram a superstição e o pensamento mágico), até a negligência do representante de uma nação, que se recusa a cuidar da saúde do seu povo e se mostra indiferente, ao debochar das centenas de milhares de mortos em pouco mais de um ano.
O que me faz sensível a tudo isso é, talvez, o mesmo que faz aparecer, nos meus livros, os sinais de uma certa descrença de que sejamos melhores seres do que apregoamos. No entanto, perseveramos, graças àqueles que se importam verdadeiramente com a vida humana. É preciso continuar escrevendo. Quem sabe alguém possa se reconhecer no texto e, quem sabe, fazer da leitura uma oportunidade para reflexão e mudança?
Em sua carreira de psicanalista e professora, suponho que tenha ajudado centenas de pessoas na busca pelo pensamento autônomo. Da forma como está estabelecido o debate público em torno da crise sanitária, não parece haver muito incentivo nem tampouco apreço pelo exercício do pensamento autônomo. Aquilo que você enxerga a partir de seu ponto de observação deixa você otimista ou pessimista em relação às transformações individuais e coletivas a que a pandemia pode dar lugar?
Como disse, algo da minha descrença na humanidade aparece em alguns dos meus livros. Mas esta visão convive com uma outra, que é a minha esperança no cultivo das luzes da razão, seja pela literatura e pelo pensamento reflexivo que a leitura propicia, seja pela liberdade de pensamento que subverte a cegueira das imposições dogmáticas e pretensamente políticas, seja pelo empreendimento da psicanálise como dispositivo para uma mudança subjetiva mais emancipada, ética e criativa.
Devemos sempre resistir à queima de livros, metafórica ou real (é sempre bom lembrar que os livros de Freud foram os primeiros a serem queimados pelo regime nazista), e ao obscurantismo que alimenta a extinção de projetos culturais e artísticos. Esses tipos de violência impedem justamente o que você menciona, que são as transformações individuais e coletivas que alimentam as formas civilizadas e éticas de nos relacionarmos uns com os outros.
Dada sua dupla atuação como psicanalista e como escritora, você tem familiaridade com a importância do encontro para o sucesso da primeira atividade e o papel da solidão no desenvolvimento da segunda. Como se situa em relação ao modo remoto de interações, como esse que propõe a Bienal do Livro, realizada virtualmente, via Instagram?
É mesmo um equilíbrio sutil entre a necessidade de contato real e a “assepsia” do ambiente virtual. É verdade que o meio remoto não substitui o calor real do abraço dado em um momento difícil ou em uma celebração de alegria. Mas recebo com entusiasmo a realidade do modo remoto de interações, porque ele permite trocas culturais de grande abrangência que dificilmente aconteceriam nestes tempos cheios de limitações impostas pela pandemia. A Bienal Mineira do Livro é uma dessas oportunidades.
O modo remoto tem possibilitado os atendimentos on-line que, mesmo antes da pandemia, já eram realidade entre os que trabalham com saúde mental, mostrando que uma psicoterapia ou uma psicanálise felizmente não necessitam das quatro paredes concretas de um consultório para acontecerem. Com o risco de me desviar do que você pergunta, eu diria ainda que, no encontro virtual de uma terapia on-line, por exemplo, o que importa é a qualidade da escuta fornecida pelo terapeuta, escuta que deve ser pautada pela ética do respeito e da empatia com que devemos acolher o sofrimento emocional daquele que nos procura no consultório.
Quanto ao papel da solidão da escrita, para mim ela é um ingrediente essencial. Para escrever, preciso de reclusão, na qual a música é, às vezes, mas nem sempre, o único ruído além daquele que procede do reservatório das palavras, dos afetos e das ideias que alimentam a minha escrita.
Você está preparando um novo livro? Se sim, sua inspiração para escrever veio do tempo presente, desse "intenso agora", ou de uma outra instância muito diferente?
Um escritor não para de trabalhar. Mesmo se não está escrevendo, está colhendo material, porque está sempre prestando atenção. Venho sentindo uma certa inquietação, típica de quando estou para começar um novo projeto literário. É bem provável que logo eu vá me sentar à frente do computador, para deixar as palavras escritas me levarem ao encontro do que desconheço no meu pensamento, como sempre acontece.
Enquanto isso, como não posso viver sem escrever, seja ou não um texto ficcional, recentemente escrevi dois artigos sobre literatura e psicanálise, um deles publicado pela revista FronteiraZ, da PUC-SP, no qual abordo a vida e a obra de Romain Gary, um escritor francês de origem judaica que se matou em 1980. O outro artigo ainda está inédito, e nele examino um romance do escritor sul-africano J. M. Coetzee.
Em 2020 aceitei o desafio proposto por Rogério Faria, presidente da AML, para escrever um conto para a coletânea “20 contos sobre a pandemia 2020” (Editora Autêntica). Também em 2020, participei da coletânea “Feliz aniversário, Clarice” (Autêntica), organizada pelo escritor Hugo Almeida, para homenagear os 60 anos de publicação de “Laços de família”, de Clarice Lispector.
Quais foram os autores em que você encontrou refúgio desde março de 2020?
De uns tempos para cá, eu já vinha relendo aqueles que me abriram os olhos para “enxergar o outro lado da lua” nas coisas que nos acontecem, tais como Jorge Luis Borges, Julio Cortázar, Amos Oz, Ricardo Piglia, Italo Calvino, Bashevis Singer, Freud, só para citar alguns. Desde que a pandemia começou, as leituras e releituras têm sido as mais diversas - ficção, poesia, crônica, ensaio, tudo misturado: Murakami, Romain Gary, Albert Camus, Hal Reames, Branca Maria de Paula, Flávia de Queiroz Lima, Phillip Roth, Lyslei Nascimento, Jaime Prado Gouveia, Sérgio Sant’Anna, Carlos Herculano, Kaio Carmona, Madu Brandão, Paulinho Assunção, Ruth Silviano Brandão, Cassandra Pereira França, Francisco de Moraes Mendes, Carla Madeira, Lino de Albergaria, Érica Toledo, Daniel Kupermann, Sylvia Plath, Maria Esther Maciel, Hugo Almeida, Flavia Naves Drummond, David Foster Wallace, Irvin Yalom, Renato Mezan, Luís Giffoni são alguns dos que me chamam assim de repente, sem que eu esteja esperando.
Uma coisa é certa: Ler e reler é sempre uma surpresa. Em tempos de pandemia, a leitura é um enorme alento que segue iluminando o caminho para fora da escuridão do túnel.
Uma coisa é certa: Ler e reler é sempre uma surpresa. Em tempos de pandemia, a leitura é um enorme alento que segue iluminando o caminho para fora da escuridão do túnel.
A LITERATURA DE ANA CECÍLIA CARVALHO
Conversa entre a escritora e Rogério Tavares, presidente da Academia Mineira de Letras, nesta terça-feira (27/07), às 19h, via Instagram .