No próximo dia 8 de agosto se completará um ano da demissão de todo o corpo técnico da Cinemateca Brasileira. Nestes quase 365 dias, a instituição só contou com funcionários responsáveis pela manutenção e limpeza do local.
Em manifesto publicado nesta sexta-feira (30/07), um dia após um novo incêndio destruir parte de seu acervo, ex-funcionários denunciaram um “crime anunciado” em decorrência do “abandono pelo governo federal”. A previsão de um incêndio já havia sido feita há mais de um ano, pelos mesmos ex-funcionários.
O grupo também fez um levantamento prévio do que pode ter se perdido pelo fogo que consumiu o galpão na Vila Leopoldina. O local abrigava arquivos de órgãos extintos, como a Embrafilme e o Instituto Nacional do Cinema, bem como documentos do Tempo Glauber, que guarda o acervo do cineasta Glauber Rocha (1939-1981). Também fazem parte do grupo filmes nacionais e estrangeiros em 35mm, vindos do acervo da distribuidora Pandora Filmes.
Faz também que o governo Bolsonaro tomou para si a tutela da Cinemateca—até então, a instituição era gerida pela Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto, entidade privada que afirmava não receber os repasses do governo previstos no contrato.
Com a tutela, mas sem gestão alguma, no início deste ano, em caráter emergencial, a Sociedade Amigos da Cinemateca foi escolhida pelo governo para gerir a Cinemateca. A gestão Bolsonaro, porém, não assinou convênio.
EDITAL
Somente ontem, ou seja, após o incêndio, a Secretaria Especial da Cultura publicou um edital no “Diário Oficial” para contratação de uma entidade para gerir a instituição pelos próximos cinco anos. O contrato prevê o aporte de R$ 10 milhões anuais, mas o contemplado deverá buscar mais recursos.O contrato deve prever a execução de atividades de guarda, preservação, documentação e difusão do acervo audiovisual da produção nacional por meio da gestão, operação e manutenção da Cinemateca Brasileira, segundo o edital assinado por Bruno Graça Melo Côrtes, secretário Nacional do Audiovisual, pasta subordinada à Secretaria Especial da Cultura, que é comandada pelo ator Mario Frias.
Frias está em Roma, para uma reunião dos ministros de Cultura dos países do G20. Pelo Twitter, o secretário eximiu o governo atual de qualquer erro, colocando a culpa na gestão anterior. "O estado que recebemos a Cinemateca é uma das heranças malditas do governo apocalíptico do petismo, que destruiu todo o Estado para rapinar o dinheiro público e sustentar uma imensa quadrilha de corrupção e sujeira criminosa."
Entre os documentos a serem apresentados pelos interessados em participar da seleção estão o programa de trabalho proposto pela entidade para o desempenho das atividades previstas com duração de cinco anos - a contar de dezembro de 2021 (ou da assinatura do contrato) - e podendo ser renovado "sucessivas vezes".
PLANO
Este projeto deve estipular metas a serem atingidas e os respectivos prazos de execução e minutas básicas de regulamento de compras e de regulamento de seleção de pessoal. E ainda um plano detalhado para captação e geração de recursos adicionais. O resultado provisório sairá em 27 de outubro.Com a função de preservar e difundir o acervo audiovisual brasileiro, a Cinemateca Brasileira é de responsabilidade, hoje, da Secretaria Nacional do Audiovisual, braço da Secretaria Especial de Cultura e subjugada ao Ministério do Turismo. Até o ano passado, a Associação Roquette Pinto (Acerp), uma Organização Social (OS), estava à frente da instituição. Mas, o Ministério da Educação (MEC), na gestão do ex-chefe da pasta Abraham Weintraub, não renovou o contrato com a Acerp.
Sem repasse, a Cinemateca somou inúmeras dívidas, até mesmo de contas de luz e água. O Ministério Público Federal (MPF) chegou a alertar o governo federal, no último dia 20, sobre a situação de abandono do galpão incendiado.
Ex-diretor da Cinemateca Brasileira e ex-secretário de Cultura de São Paulo, Carlos Augusto Calil, hoje presidente da Sociedade Amigos da Cinemateca, classificou o incêndio como um "desastre" e lembrou que este foi o quinto sofrido pela instituição – o primeiro incêndio ocorreu em 1957. "O que se perdeu agora no depósito foi o que havia sobrevivido à inundação de fevereiro de 2020. O que a água começou o fogo terminou", disse.
Calil não acredita que o incêndio tenha sido uma fatalidade. "Assim como no Museu Nacional, isso não foi uma fatalidade. O abandono das instituições públicas brasileiras de memória é um assunto escandaloso", disse.
PREOCUPAÇÃO
E alertou que ainda há muito com o que se preocupar – inclusive no que diz respeito ao prédio principal da Cinemateca, na Vila Clementino, onde está o acervo inflamável. "A segurança da Cinemateca não se faz apenas com controles de temperatura e de segurança. Ela é feita pelo exame periódico desse acervo pelos técnicos, e a Cinemateca está sem técnico nenhum. Ela está fechada há mais de um ano."André Sturm, proprietário da distribuidora Pandora Filmes, que teve seu primeiro emprego na própria Cinemateca, falou sobre a perda. “Durante muitos anos, fui juntando uma coleção de cópias de distribuidoras que fechavam, cópias da Pandora, e fui mantendo uma coleção. Em determinado momento, como não tinha mais como manter, doei a coleção para a Cinemateca Brasileira. O meu acervo, que hoje era de todo o mundo, queimou. E são cópias que nunca mais vão existir, porque ninguém mais faz cópias em 35mm”, lamentou Sturm.
O abandono refletia no trabalho de quem vive do cinema, como conta a roteirista e diretora Sinai Sganzerla, filha do cineasta Rogério Sganzerla (1946-2004) e da atriz Helena Ignez. “Várias pessoas estavam se organizando e chamando a atenção para isso. Esse atual governo não tem o menor apreço pela memória, pela cultura, pelas artes. Recentemente, enviei e-mails para lá, mas não tinha retorno. Tenho amigos que trabalharam lá sem receber. Não renovaram os contratos e a Cinemateca ficou completamente abandonada”, afirma Sinai.
De acordo com ela, os arquivos de diversos filmes de Rogério Sganzerla estão na Cinemateca. Ela teme pela destruição do acervo. “Os negativos dos filmes do meu pai estão lá. É muito triste. É uma falta de amor à própria história. Lá também ficam guardados documentos, iconografias e um acervo importantíssimo. Acervos de televisão, do Glauber Rocha, entre outras coisas. Meu pai mesmo era um frequentador da Cinemateca”, diz.
O diretor de cinema Guilherme Fiúza também falou sobre sua profunda decepção pela destruição da história do audiovisual brasileiro. “A gente está falando de acervo que vem desde o século 19, passando por vários ciclos. Está tudo guardado ali. A memória imagética do país. Ela não só guarda filmes, mas também documentos: roteiros, cartazes de filmes e tudo que envolve esse universo”, comenta.
Fiúza conta que vários filmes seus estão na Cinemateca. “Eu torço muito para que tenha sido uma pequena parcela. Qualquer parcela (perdida) de um museu é incalculável. É como você perder um dedo, um braço. Isso faz parte do projeto (do governo federal). É uma desconsideração completa do que é o Brasil. Eles querem construir outra história, que não é essa contada em documentos”, afirma.
A reportagem procurou o Ministério do Turismo para obter posicionamento. Em nota, a Secretaria Especial da Cultura informou que "cabe registrar que todo o sistema de climatização do espaço passou por manutenção há cerca de um mês como parte do esforço do governo federal para manter o acervo da instituição".
O imóvel atingido pelo incêndio foi doado pela Secretaria do Patrimônio da União à Cinemateca Brasileira em fevereiro de 2009, durante o governo Lula (PT). Em 2016, um dos galpões da Cinemateca foi atingido por um incêndio que destruiu 1 mil rolos de filmes, correspondentes a 500 obras. A maior parte era formada por cinejornais.
Pelo Twitter, o cineasta Kleber Mendonça Filho comentou que o ocorrido “não parece um acidente”. Lembrou-se também de um alerta sobre a situação da Cinemateca feito durante o Festival de Cannes. “Nada foi feito”. Pela mesma rede social, a atriz Leandra Leal citou um aviso de funcionários da Cinemateca em abril deste ano sobre as condições do galpão. "No mínimo, esse incêndio foi resultado de negligência. Estamos perdendo nossa memória", escreveu.
Houve reações também no exterior. Com sede em Lyon, na França, o Institut Lumière, dirigido por Thierry Frémaux, também diretor do Festival de Cannes, afirmou, via Twitter, que o incêndio é “o novo símbolo trágico da desastrosa política cultural realizada no Brasil”.
Com início na próxima quarta (04/08) na Suíça, o Festival de Locarno afirmou que a tragédia “impacta a comunidade do cinema em todo o mundo” e que a magnitude do ocorrido demanda “imediatas ações e respostas”. (Com agências)
O que estava no
galpão incendiado*
» Acervo documental
Arquivos de órgãos extintos: Empresa Brasileira de Filmes S.A. – Embrafilme (1969/1990), Instituto Nacional do Cinema – INC (1966-1975) e Conselho Nacional de Cinema – Concine (1976;1990). Parte do acervo de documentos oriundos do arquivo Tempo Glauber, do Rio de Janeiro, inclusive duplicatas da biblioteca de Glauber Rocha e documentos da própria instituição.
» Acervo audiovisual
Parte do acervo da distribuidora Pandora Filmes, de cópias de filmes brasileiros e estrangeiros em 35mm. Matrizes e cópias de cinejornais únicos, trailers, publicidade, filmes documentais, filmes de ficção, filmes domésticos, além de elementos complementares de matrizes de longas-metragens, todos esses potencialmente únicos. Parte do acervo da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA) da produção discente em 16 mm e 35 mm. Parte do acervo de vídeo do jornalista Goulart de Andrade.
» Acervo de equipamentos e mobiliário de cinema, fotografia e processamento laboratorial
Além do seu valor museológico, muitos desses objetos eram fundamentais para consertos de equipamentos em uso corrente já que, para exibir ou duplicar materiais em película ou vídeo, é necessário maquinário obsoleto e sem reposição no mercado.
*Fonte: Manifesto de ex-funcionários da Cinemateca Brasileira