Motivos não faltam a Sara Rojo para celebrar suas quatro décadas de carreira dedicada às artes cênicas e à pesquisa acadêmica. Radicada em Belo Horizonte há 28 anos, a diretora e professora nascida no Chile criou na capital mineira dois grupos de teatro – o Mayombe, em 1995, e o Mulheres Míticas, em 2014 –, com os quais levou ao palco diversas montagens de sucesso.
Autora de livros, artigos e capítulos publicados sobre teatro latino-americano, literatura e cinema, a professora titular aposentada da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), de 65 anos, desenvolveu, paralelamente, sólida trajetória acadêmica focada, sobretudo, na pluralidade cultural da América Latina.
Revelação
Com o Mulheres Míticas, Sara compartilha, neste momento, o projeto “Hilda Penha”, que marca as comemorações de seu percurso. O projeto – que a diretora classifica como videoteatro – transpõe para o formato audiovisual o premiado texto de Isidora Stevenson, revelação da dramaturgia chilena.
Primeira grande incursão do Mulheres Míticas nesse ambiente híbrido, “Hilda Penha” traz como atriz convidada Marina Viana, com quem Sara desenvolveu longa parceria no Grupo Mayombe.
Depois de estrear em 22 de julho, o trabalho teve desdobramentos. Na semana passada, Sara participou do sarau literário “Pulsa coração latino”, promovido pelo Sesc Palladium, apresentando-se com a atriz Cynthia Paulino e o instrumentista Rei Batuque. Nesta quarta-feira (4/08), a diretora, Marina Viana e Jéssica Ribas, integrante do Mulheres Míticas, fazem live com Isidora Stevenson. O bate-papo será transmitido às 20h, gratuitamente, nos perfis do Sesc Palladium e do grupo Mulheres Míticas.
"Gravamos o monólogo ('Hilda Penha') em uma praça na periferia de BH. É diferente de teatro filmado e não é cinema, porque partimos da estrutura e de algumas particularidades que são essencialmente do teatro"
Sara Rojo, diretora
Outra atividade, marcada para o fim deste mês, é a oficina “Teatro e vídeo: o hibridismo de linguagens como caminho”, em que integrantes do grupo Mulheres Míticas – Felipe Cordeiro (assistente de direção), Sara Fagundes (direção de arte) e Alexandre Hugo (direção de fotografia e montagem) – abordarão os processos que resultaram no projeto “Hilda Penha”. As inscrições já podem ser feitas no site www.sescmg.com.br/sescpalladium.
Sara Rojo afirma que “Hilda Penha” se constitui num arco que condensa suas realizações no teatro desde que chegou a Belo Horizonte. “É um projeto do Mulheres Míticas, grupo jovem, mas com força e energia muito grandes, que estabelece uma ponte, porque a protagonista é Marina Viana, atriz convidada com quem mantive longa parceria no Mayombe”, salienta.
“Trata-se de juntar forças neste momento tão difícil. E com um tema que tem a ver com as mulheres: a perda – no caso, a perda de um filho, drama vivido pela protagonista – e o não aceitar o luto. Tudo isso dentro de um contexto social e histórico”, explica.
O motor do projeto foi a concretização de uma obra criada por mulheres, executada por mulheres e que problematiza a condição feminina, segundo ela, com o sentido e a força do atual momento histórico.
Emoção
“Já conhecia a obra da Isidora e, procurando alguns textos para trabalhar um monólogo, pensei em fazer isso com foco nas mulheres. Fiquei muito emocionada com a leitura de 'Hilda Penha'”, conta Sara. O projeto de teatrovídeo tem o suporte do edital Descentra, da Prefeitura de Belo Horizonte.
“Gravamos o monólogo em uma praça na periferia de BH. É diferente de teatro filmado e não é cinema, porque partimos da estrutura e de algumas particularidades que são essencialmente do teatro”, explica Sara.
A live sobre “Hilda Penha”, nesta quarta-feira, vai abordar o projeto em um sentido mais amplo. “Vamos conversar sobre o que a peça representa neste momento, além da técnica que adotamos para fazer esse videoteatro, do sentido que a cultura tem neste momento, do porquê de a senhora Stevenson ter escrito a obra e da concepção da Marina Viana em torno dela”, diz.
Outros eventos completam o pacote de comemorações pelos 40 anos de carreira de Sara Rojo. O grupo Mulheres Míticas está ensaiando outra peça “A mulher porca”, do dramaturgo e cineasta argentino Santiago Loza, com previsão de estreia para outubro.
Há cerca de um mês, foi lançado, pela editora Javali, o livro “Mulheres Míticas em performance”, que reúne os dois últimos textos que o grupo levou ao palco – “O deszerto” e “Classe” –, além de artigos assinados por seus integrantes (Felipe Cordeiro, Gabriela Figueiredo, Jéssica Ribas, Luísa Lagoeiro e Sara Rojo) e por colaboradores.
Guerrilha chilena
Além de trazer o relato delirante da mulher que não suporta a perda do filho, “Hilda Penha” traça relações entre a perda individual e o trauma social, atravessando temas como fé, violência policial e a transição entre regimes políticos. O texto de Isidora Stevenson retoma um fato real: o tiroteio entre policiais e guerrilheiros do Movimiento Juvenil Lautaro após um assalto ao Banco O’Higgins, na capital chilena, em 1990. Neste momento em que tensões políticas voltam a ganhar força na América Latina, o episódio e suas consequências seguem convocando reflexões sobre a violência e a justiça.
Diante do Penhasco: a dor e o delírio de 'Hilda Penha'
Live com Isidora Stevenson, Sara Rojo e Marina Viana. Nesta quarta-feira (4/08), às 20h, pelo Instagram do Sesc Palladium (@sesc.palladium).
BH: divisor e águas para Sara
Lançando um olhar retrospectivo sobre a própria carreira, Sara Rojo delimita suas maiores realizações em dois períodos – antes e depois de vir morar em Belo Horizonte.
“No Chile, poder dirigir grupos de teatro camponeses durante o período da ditadura militar foi uma experiência absolutamente fantástica. No campo acadêmico, defendi uma tese que me abriu as portas, inclusive para ser professora aqui. Já em Minas Gerais, motivo de grande orgulho foi ter dirigido o Grupo Mayombe, especificamente em dois textos históricos, ‘A pequenina América e sua vó $ifrada de escrúpulos’ e ‘A mulher que andava em círculos’, com Marina Viana”, afirma.
Ela destaca a criação do grupo Mulheres Míticas, chamando a atenção para o mais recente espetáculo da trupe, “Classe”, do dramaturgo chileno Guillermo Calderón, levado a público pouco antes da chegada da pandemia.
O texto trabalha o conflito entre professor e aluno – embate que se dá na rua e dentro da sala de aula, influenciado pela idade e faixa etária de ambos, mas também por interesses e expectativas em relação ao mundo.
Luta
Um elemento propulsor do fazer artístico de Sara Rojo é a possibilidade do trabalho em grupo. “Isso vale para o Mayombe e para o Mulheres Míticas, tem a ver com a ideia do coletivo que leva adiante um projeto, o que acho absolutamente fantástico. É um grupo de pessoas que lutam muito para conseguir alguma coisa e remam na mesma direção. Nem sempre vamos conseguir tudo o que queremos, mas tentamos”, ressalta.
Os dois grupos de teatro surgiram da UFMG, reunindo alunos que se tornaram artistas importantes para Belo Horizonte. “Uma coisa que uniu meu percurso acadêmico com o percurso artístico foi fazer parte da comissão criadora do curso de artes cênicas da UFMG. Foi algo absolutamente lindo na minha trajetória, porque deu um sentido geral a tudo. Esse curso, hoje, é reconhecido no país inteiro”, orgulha-se a diretora.
Feminista e porta-voz da América Latina
A protagonista de “Hilda Penha”, Marina Viana, e a dramaturga Isidora Stevenson destacam a importância do trabalho desempenhado pela diretora chilena.
Sara Rojo costuma dizer que trabalha com Marina “desde que ela nasceu”. A afirmativa, obviamente, não é literal – diz respeito ao desabrochar da atriz para o universo do teatro –, mas dá a dimensão da sintonia entre as duas nos últimos 20 anos.
História
Marina conheceu Sara em 2001, teve aulas com ela na Faculdade de Letras entre 2002 e 2003 e, logo em seguida, foi convidada a integrar o Grupo Mayombe. “Desde o momento em que comecei a trabalhar com a Sara, ela influenciou minhas escolhas como artista. Fiz artes cênicas e fiz história, e minha relação com ela me faz voltar o olhar para a América Latina, o que passa a fazer parte do meu trabalho”, conta a atriz mineira.
“Além disso, comecei a escrever no Mayombe. Entrei como atriz, mas desde o começo a gente sempre trabalhou muito com a criação coletiva, então desde a primeira montagem escrevo alguma coisa para levar à cena. Tem essa influência dela no sentido da dramaturgia”, aponta.
Marina afirma que Sara Rojo exerce grande influência sobre toda uma geração do teatro feito em Belo Horizonte. Os ecos desse trabalho estão presentes no Quatroloscinco e na Cia. Primeira Campainha, além de trabalhos de atrizes como Idylla Silmarovi.
“Uma coisa marcante dela que se reflete em mim é o fato de eu, hoje, me entender como mulher de teatro com pensamento feminista e latino-americano. Esse olhar para o feminismo vem dela, começa com ela”, diz, enfatizando que, independentemente de modismos ou tendências, o teatro de Sara Rojo sempre foi assumidamente político.
“Nos anos 2000, o teatro político era tido como antiquado, e a gente foi achando outros caminhos para abordar essa temática. Vi a possibilidade de trabalhar com um teatro político que não era o mesmo que se fazia décadas atrás, pois havia outros pensamentos, outras coisas acontecendo. O pensamento mais crítico sempre foi marcante no Mayombe”, comenta Marina.
Isidora Stevenson revela que há muitos anos acompanha, com admiração e respeito, o trabalho da diretora. “Me pareceu um sonho quando ela me contatou para dizer que estava pensando em traduzir 'Hilda Peña'. Quando quis encenar o texto, então, nem pude acreditar. Sara é uma referência teatral e feminista muito importante”, ressalta.
Sonho
A dramaturga ficou impressionada com a adaptação de sua obra para o formato videoteatro proposta pelo grupo Mulheres Míticas. “Um grande trabalho: atuação, concepção estética, câmera, sonoplastia e direção. Estou muito agradecida por terem escolhido ‘Hilda’”, comenta. “A linguagem teatral é tão distinta da cinematográfica que vi coisas na obra como se nunca a tivesse visto. É impressionante a dimensão universal da obra, dei-me conta de que ela funciona em outras culturas, outros idiomas, outras paisagens”, aponta Isidora.