A historiadora Mary Del Priore abre seu novo livro, o recém-lançado “À procura deles: quem são os negros e mestiços que ultrapassaram a barreira do preconceito e marcaram a história do Brasil”, evocando a ideia de “lugar de fala”, e acrescentando imediatamente que o seu lugar “é o da escuta”.
Mais adiante, ainda na introdução, ela escreve: "Se a proposta deste livro há de parecer incorreta para alguns por eu não ser uma autora preta, a ideia que o fez desabrochar me pareceu boa: dar protagonismo aos que conseguiram ‘chegar lá’, driblando as dificuldades e o preconceito. Apresentá-los ao público. Mostrar uma faceta pouco explorada, a de negros como agentes sociais. Lutar contra o apagamento de lideranças pretas e pardas, que existiram e não são lembradas".
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Segundo Mary, “À procura deles” é, antes de mais nada, fruto de seu hábito de pesquisar. “Sou uma pessoa de arquivo, gosto de documentos, estou sempre descobrindo figuras, e trabalhei muito com Primeiro e Segundo Reinados. Observei, nesse percurso, que nos salões havia afro-mestiços”, diz, pontuando que “À procura deles” não é um livro sobre escravidão nem racismo, “mas uma história de pessoas que conseguiram superar esses obstáculos infernais e fizeram, junto com outras tantas pessoas, esse caminho de se elevar na sociedade”.
PESQUISAS
A historiadora conta que suas pesquisas a levaram a reconstruir histórias de vida incríveis, como a de Francisco de Montezuma, filho de um negro e de uma branca, que desde muito jovem escrevia poesias e em pouco tempo se tornou jornalista. Ele saiu da Bahia, onde nasceu, foi ao Rio de Janeiro, onde caiu nas graças do imperador Dom Pedro I e, de lá, foi estudar em Coimbra.
“Esse mulato, como era tido na época, também caiu nas graças de José Bonifácio, que o levou para a maçonaria. Posteriormente ele fez uma trajetória incrível na política. Francisco de Montezuma foi conhecer a Europa, foi para Portugal, para a Inglaterra, quer dizer, é fantástico você ver essas pessoas no esplendor de suas personalidades”, diz.
O livro também foca, conforme ela destaca, histórias de sucesso que, contudo, carregam uma forte carga dramática, como a de Eduardo Ribeiro, “um rapaz paupérrimo, filho de uma mulher pobre, de um pai maluco, que, a despeito de todas as dificuldades, fez carreira política através da escola militar e, em Manaus, uma vez eleito, ergueu uma cidade em estilo francês à beira do Rio Negro, e que morreu tragicamente, porque era psicótico e acabou cometendo suicídio”. A historiadora salienta esses contrastes que sua pesquisa revela e avalia que isso permitiu a ela chegar mais perto dos indivíduos que estudou. “Você dá carne e sangue a esses personagens”, diz.
Mary chama a atenção para um panorama de que pouco se fala: no início do século 19 havia uma população de 43% de afro-mestiços livres, que se configuravam numa massa de pessoas letradas que estavam no clero, no exército, no serviço público, no pequeno comércio. Ela diz que procurou jogar luz também sobre as mulheres que trouxeram da África uma tradição do comércio feminino e como isso contribuiu para o êxito de seus descendentes.
“Você pega, por exemplo, o Juliano Moreira, que entra na faculdade aos 14 anos e faz uma trajetória brilhante, internacional. Ele vai para Paris, onde se forma na Sorbonne, recebe uma comenda altíssima em Tóquio, retorna para o Brasil com uma francesa à tiracolo, assume a presidência do Banco do Brasil e termina como senador. Einstein fez questão de conhecer pessoalmente e cumprimentar o Juliano. E isso tudo tem a ver com uma mãe comerciante que lá atrás pensou no letramento de seu filho”, afirma.
Das histórias dos personagens que levantou, Mary Del Priore considera a de Juliano Moreira – por quem diz ter ficado apaixonada – a mais marcante. “Ele é muito impressionante. Filho de empregada doméstica, se formou muito jovem e fez uma carreira de grande êxito em várias frentes. A faculdade de medicina da Bahia foi uma sementeira de médicos negros, e ele talvez tenha sido o filho mais ilustre de lá, porque fundou a disciplina psiquiátrica no Brasil. Além disso, ocupou cargos públicos importantes. O Juliano venceu o racismo dentro de um concurso e seguiu navegando com uma altivez e com uma serenidade incríveis. A maneira como ele percorreu a Europa participando dos congressos mais sofisticados com absoluta segurança chama muito a atenção”, relata.
APAGAMENTO
A historiadora aponta que, naturalmente, encontrou dificuldades para pesquisar um passado que é objeto de apagamento histórico. Ela diz que reconstruir a trajetória desses personagens passa por documentos “um pouco laterais”, a que tortuosamente se chega por meio dos registros oficiais da época.
O próprio título do livro, “À procura deles”, remete à ideia de empreender uma busca por algo que está oculto. “Tive que correr muito atrás, a documentação é escassa, você tem que ir somando pedacinhos. Mas é curioso como esses próprios personagens foram destilando suas histórias. É trabalho de pesquisa. Digo sempre que lugar de historiador é no arquivo, é lá que esses documentos começam a falar sozinhos, eles te chamam. Esse é um livro de ideias, minha proposta é que a gente comece a olhar quem não é escravo, aqueles que já estavam há duas ou três gerações libertos”, diz.
“À procura deles” traz como pano de fundo o crescimento das cidades e o desenvolvimento da vida urbana naquele período, o que, segundo Mary, representou um conjunto de condições favoráveis à ascensão econômica e social de negros e mestiços. Ela dedica um capítulo do livro a esse processo de inserção na sociedade.
“Os transplantados da África não chegaram aqui como páginas em branco, eles traziam suas bagagens, eram religiosos, engenheiros, comerciantes, agricultores, quer dizer, eles tinham uma história para contar, e isso dava a eles um lugar na sociedade. O Brasil estava crescendo, produzia muito mais que Portugal, então a vida urbana abria muitas possibilidades, e uma coisa fantástica que tem sido cada vez mais estudada é o letramento de negros e mestiços. Tem essa ideia de que ‘ah, escravo não sabia ler’. Sabia sim, muitos sabiam. A questão do letramento catapultou muitas dessas pessoas para serem professores e donos de escolas”, diz.
Na opinião da historiadora, quanto mais pessoas se interessarem por esse assunto – o êxito de negros e mestiços num período que vai da escravidão até o início do século 20 – mais se revelará a cara do Brasil, que, conforme aponta, não é binária. “O Brasil é feito de muita mestiçagem, os ingleses usam o termo ‘colored’ porque eles não sabem definir os caboclos, os mulatos, os pardos. É um horizonte fantástico de personagens. É um convite para que outros sejam descobertas. Pouca gente sabe que o Brasil teve um presidente negro”, diz, referindo-se a Nilo Peçanha. “A ideia é que essas pessoas sejam reconhecidas. O apagamento histórico existe, então é importante que o Brasil saiba da vida e do sucesso dessas figuras.”
“À procura deles: quem são os negros e mestiços que ultrapassaram a barreira do preconceito e marcaram a história do Brasil”
.Mary Del Priore
.Editora Benvirá (320 págs.)
.R$ 32,44