Jornal Estado de Minas

MÚSICA

Veja como a pandemia afetou as carreiras de Toninho Horta e Paulinho Santos

A despeito de todas as dificuldades e barreiras impostas por estes tempos de pandemia, a roda tem que girar e, como reza o célebre samba de Arlindo Cruz, o show tem que continuar. Impossibilitados de exercer seu ofício plenamente, com agendas canceladas e planos abortados, músicos mineiros veteranos tiveram que encontrar saídas para se manterem ativos e adaptar seus projetos para o ambiente virtual. 





É o caso de Toninho Horta, que sempre viajou o mundo para mostrar seu trabalho e, de repente, viu seu raio de ação limitado aos metros quadrados de seu apartamento. Isso, no entanto, não o impediu de desenvolver alguns projetos, que, a partir do fim deste mês, começam a vir a público.

Um deles, o mais ambicioso, é um seminário virtual batizado “Movimento musical além das montanhas”, previsto para ocorrer entre 18 e 25 de setembro e que consiste numa série de atividades, como bate-papos, depoimentos, cursos, mesas-redondas, pocket shows e dois grandes concertos, de abertura e encerramento. 

Boa parte das ações que compõem esse seminário foi gravada recentemente, ao longo de uma semana, no auditório do Minas Tênis Clube, sem público, apenas com a equipe técnica e os artistas participantes, numa maratona de aproximadamente 12 horas por dia, segundo Toninho.





“Foi muito lindo o registro. Fizemos seis mesas redondas e dois shows, o de abertura e o de fechamento, com 13 músicas em cada um e a participação de vários herdeiros do Clube da Esquina, o Rodrigo e o Telo Borges, o Ian Guedes e muitos outros instrumentistas”, conta. 

Toninho explica que ainda serão gravados “os pocket shows que vão ser exibidos ao longo do seminário, com nomes como Nelson Angelo, Robertinho Silva, Wagner Tiso, vários músicos de Belo Horizonte e de São Paulo ligados à minha história e à história do Clube da Esquina. Também devemos ter uns 10depoimentos de músicos históricos e uns 18 cursos, ministrados por eles, entre matérias teóricas e prática de instrumentos”, detalha.

Esse seminário deriva de uma ideia gestada há dois anos, o “Circuito instrumental além das montanhas – CIAM”, que chegou a ser marcado para o início de 2020, no Instituto Izabela Hendrix. Num primeiro momento, o evento foi adiado em razão das fortes chuvas no período do verão. Depois, com a chegada da pandemia, hibernou. 





“Ainda no ano passado conseguimos a confirmação de um patrocínio, da Anglo American, para fazer virtualmente. Reestruturamos a ideia e chegamos ao formato de um seminário on-line que se desenrola durante oito dias”, cita Toninho. 

GERAÇÕES 

Com relação à mudança de nome, o instrumentista explica que tem a ver com a proposta e os rumos que a empreitada tomou. “Pensamos que, agora, em vez de circuito, a ideia é fazer um movimento da música mineira para as novas gerações”, pontua. 

Ele explica que, com o patrocínio obtido, o projeto ganhou um viés social: estudantes de escolas de música das cidades que estão no eixo de operação da empresa de mineração terão acesso gratuito a alguns dos cursos que serão ofertados no escopo do seminário. São seis cidades em Minas Gerais, na região do Serro, duas em Goiás e uma no Rio de Janeiro.





Do ponto de vista temático, Toninho ressalta que o foco é mesmo o repertório do Clube da Esquina, mas que a ideia é abarcar toda a produção musical mineira, desde o barroco. “Vamos abordar o barroco, a modinha mineira, a seresta de Diamantina, o samba-canção e a música de Carnaval do Celso Garcia, que foi parceiro do Rômulo Pae; a bossa nova da geração do Pacífico Mascarenhas e o movimento da música instrumental, que é muito forte atualmente. Tem, ainda música regional, com Rubinho do Vale, Tizumba, Titane, quer dizer, tem essas vertentes todas, muito fortes, até o pop rock, com essas bandas que fizeram muito sucesso a partir dos anos 90”, cita.

Além do seminário, o vencedor do Grammy Latino 2020 com o álbum “Belo Horizonte” também vai marcar presença no ambiente digital com o curso on-line “O jeito de tocar Toninho Horta”, previsto para ser lançado no próximo dia 30. 

“Vão ser três módulos, com aproximadamente uma hora e meia cada um, totalizando mais ou menos cinco horas. No primeiro, falo do disco ‘Belo Horizonte’, da minha concepção e do que me levou a fazer cada música. No segundo módulo, falo das músicas antigas, os clássicos mesmo, como ‘Manuel, o Audaz’, ‘Aqui Ó’ e outras, por que e onde essas composições foram tocadas. E o terceiro módulo vai ser mais técnico, com os arpejos que faço, as harmonias, as progressões de acorde, dinâmica, enfim, meu jeito de tocar”, explica.




DEPOIMENTO 

Juntamente com o curso, ele vai lançar um material complementar que é em parte didático, em parte biográfico e histórico. Trata-se, na verdade, de um longo depoimento gravado, que Toninho classifica com um documentário. 

“Vamos soltar isso ainda neste mês. O conteúdo sou eu falando sobre várias décadas da minha carreira, para as pessoas saberem os discos que faziam minha cabeça, os músicos com quem toquei e tudo o mais que vivi na profissão até aqui”, diz. 

Segundo ele, a primeira parte do documentário já foi gravada e está com duas horas e meia de duração. “Ainda virão outras, e a ideia é lançar em partes. Sou só eu falando, com o violão na mão. Isso é um produto para ser vendido”, diz, acrescentando que já tem postado, em sua conta no Instagram, aperitivos deste material – pequenos vídeos em que comenta passagens de sua carreira ou apresenta elementos característicos de seu modo de tocar.





As inscrições para o seminário “Movimento musical além da montanhas” e para o curso “O jeito de tocar Toninho Horta” serão abertas no início de setembro, quando os links e formulário estarão disponíveis no site do músico e no site do Instituto Maestro João Horta – ambos em processo de estruturação. 

“Em 2013, um ano antes de minha mãe falecer, com 104 anos, a gente criou o Instituto Maestro João Horta, que era meu avô, pai dela, como uma forma de homenagem. A ideia, com esse instituto, é que fosse um canal para eu fazer pesquisa acerca do espólio dele e desenvolver vários projetos de recuperação de partituras, de memória, para divulgar e dar referência da boa música de Minas para o mundo. Agora ele vai ganhar um site novo em folha, que também vai ser plataforma para o seminário e para o curso”, diz.

Paulo Santos, integrante do extinto Uakti, divulgou no fim do ano passado um single de seu álbum que sairá em 2022 (foto: Bernard Machado/Divulgação)

Movido pela indignação

O multi-instumentista Paulo Santos, integrante do extinto grupo Uakti, é outro veterano da música mineira que, durante o período da pandemia, para driblar o necessário isolamento social, mergulhou no próprio ofício – mas de um jeito muito diferente de Toninho Horta. 





Ele dedicou-se à criação de temas inéditos cujo resultado é o álbum "Chama'', seu primeiro trabalho solo desde “Paulo Santos - música para performances de Eder Santos”, lançado em 2002. O disco já está pronto – o primeiro single, “Berço do ar”, foi lançado nas plataformas no fim do ano passado. Mas, em razão do cronograma do Selo Sesc, de São Paulo, que o chancela, o registro só deve vir à luz em janeiro de 2022.

Paulo conta que este trabalho se vale de temas e esboços que já tinha guardados, mas só começou mesmo a tomar forma em março de 2020. “Comecei a dar o direcionamento desse álbum quando entramos na pandemia. O fato de ficar em casa, com tudo fechado, as coisas ficaram difíceis, então foi um processo que se desenrolou todo no casulo, digamos assim, eu gravando comigo mesmo. Toquei todos os instrumentos. É um negócio radicalmente autoral, porque fiz tudo, compus, toquei, gravei. É uma selfie. Mas acho que é essa coisa estranha que aconteceu mesmo e que acho que afetou a criação. A música ficou muito intensa dentro da gente”, diz.

BOIADA 

“Chama”, segundo seu autor, é um trabalho movido pela indignação. “O que deu o start mesmo no processo foi a coisa do desmatamento, aquilo foi chocante, aquele momento no início da pandemia, a história de passar a boiada”, diz, acrescentando que esse mote justifica o título do disco. 





“Esse foi o gatilho. Como ficou fácil devastar as coisas, como foi simples, numa reunião, um ministro falar em passar a boiada. E você junta isso com muitas pessoas morrendo no país, é tudo muito triste. ‘Chama’ tem a ver com a Amazônia, com o Pantanal, com Minas Gerais também, onde morreram 300 pessoas com os rompimentos de barragens, porque é tudo parte das mesmas inconsequências”, aponta.

Ele não esconde sua revolta com o atual estado das coisas, sobretudo no âmbito da política, e considera que isso naturalmente se reflete na criação. “Acho que muitos trabalhos que têm saído vêm com essa espessura, do que a gente está passando, deste momento que a gente não imaginava que pudesse acontecer.”

Por conta da pandemia, nós, músicos, fomos os primeiros a parar e vamos ser os últimos a voltar, sem apoio de um Ministério da Cultura, que a gente tinha, que garantia um cuidado para com a gente, e que agora não existe, é inoperante, é um ministério acabado, dissolvido, que está destruindo a memória. Estão conseguindo destruir memórias incríveis, e começa pela cultura. Você vê a Cinemateca Brasileira pegando fogo, e, poxa, eu faço trilha para cinema. Isso abalou muito”

audima