"O romance ('A relíquia') me parece extremamente atual ao denunciar, com uma ironia feroz, a hipocrisia de um certo fundamentalismo cristão, ultrapuritano, que sufocava a sociedade portuguesa no século 19, e sufoca nos dias de hoje a sociedade brasileira"
José Eduardo Agualusa, escritor
Ele morreu há 121 anos, completados ontem, 16 de agosto, mas continua atual – para não dizer atualíssimo. O escritor português Eça de Queiroz chocou a gente de seu tempo ao abordar o incesto, ironizar o fundamentalismo cristão e denunciar a hipocrisia do clero, o que lhe rendeu a ira da Igreja Católica. Era visionário e subversivo, diz o autor angolano José Eduardo Agualusa, convidado a analisar a obra de Eça pelo projeto on-line “Ler em cena on-line”, que será realizado nesta terça-feira (17/08).
Quando tinha 13 anos, Agualusa conheceu Eça – a mãe lhe deu “Os Maias” para ler. O menino se apaixonou de tal maneira por aquele escritor que devorou toda a obra dele nas semanas seguintes.
“Sempre encontro ideias novas. Sempre acabo rindo às gargalhadas. Nenhum outro escritor me trouxe tanta alegria”, revela o angolano, de 60 anos, considerado um dos autores contemporâneos mais importantes da língua portuguesa.
DESEJO
Não poderia haver alguém mais indicado para participar de um evento chamado “Como ler Eça de Queiroz”. Afinal de contas, Agualusa abraçou o ofício por causa dele. “Seu talento literário despertou em mim o desejo de escrever. Se sou escritor hoje, devo isso a Eça de Queiroz.”
Esse homem do século 19, que foi jornalista, diplomata e pioneiro da literatura realista em Portugal, tem muito a dizer ao mundo tecnológico do século 21. Não ficou datado. O livro “A relíquia”, lançado em 1887, é exemplo disso. “O romance me parece extremamente atual ao denunciar, com uma ironia feroz, a hipocrisia de um certo fundamentalismo cristão, ultrapuritano, que sufocava a sociedade portuguesa no século 19, e sufoca nos dias de hoje a sociedade brasileira”, comenta Agualusa.
“A relíquia” conta a história de um rapaz ateu que decide fazer peregrinação à Terra Santa para conquistar a simpatia da tia puritana, devota e mi- lionária. Quando chega à Palestina, ele cai na esbórnia em bordéis e cabarés. E se dá mal ao trazer um presente para a tia rica: no lugar da santa relíquia, entrega a ela a calcinha da garota por quem se apaixonara na Terra Santa.
“Uma relíquia, pois, mas não muito santa”, diverte-se Agualusa. “Um romance que se chegasse ao conhecimento deoa Bolsonaro, e dos seus patrões, os fascistas evangélicos, seria imediatamente condenado à fogueira. Eça é subversivo hoje, tanto ou mais do que era no seu tempo”, garante.
ECOLOGIA
Outro exemplo de que Eça de Queiroz dialoga – e bem – com estes tempos em que a destruição do meio ambiente impõe a tragédia globalizada do clima é “A cidade e as serras”. Trata-se do último livro escrito pelo português, publicado em 1901, um ano depois da morte dele.
“É um romance precursor daquilo que hoje se chama ecoliteratura, fazendo a apologia do mundo rural por oposição à civilização industrial”, diz Agualusa, que estudou agronomia e silvicultura em Portugal. “Eça foi capaz de prever muitas das inconsistências, dos erros e dos crimes da revolução industrial, que conduziu o planeta até a situação dramática em que estamos hoje. Nesse sentido, foi também um visionário.”
“A relíquia” e “A cidade e as serras” são exemplos de que vale a pena conhecer outros livros de Eça de Queiroz (cujo sobrenome também é grafado Queirós) além de “Os Maias”, que rendeu ótima minissérie lançada pela TV Globo, em 2011, em parceria com o canal português SIC. Maria Adelaide Amaral assinou a trama, livremente inspirada tanto no clássico publicado em 1888 quanto em “A relíquia” e “A capital”.
Indagado sobre o seu “Eça de cabeceira”, Agualusa revela que continua relendo “Os Maias”, mas também recomenda “A cidade e as serras” e “A relíquia”.
“Um livro está vivo enquanto for capaz de incomodar. Os romances do Eça continuam a incomodar e a suscitar debate e interrogações. Pense n’ “Os Maias”, que trata de um tema tão incômodo quanto o incesto: dois amantes descobrem que são irmãos, mas nem por isso deixam de transar”, comenta.
“Nação crioula”, livro de Agualusa lançado em 1997, é uma homenagem do discípulo ao mestre. O romance epistolar traz cartas de Fradique Mendes, personagem de Eça, abordando escravidão, racismo, o amor de um português por uma ex-escrava e o impacto do colonialismo sobre o Brasil e a África, sobretudo Angola.
“O racismo é um subproduto do pensamento escravista. Para entender o racismo é preciso olhar para o passado. Acho que 'Nação crioula', ao nos levar até esse passado, não tão distante, ao mergulhar na mentalidade das pessoas dessa época, escravocratas, escravos e abolicionistas, nos ajuda a compreender o presente”, diz o autor.
Agualusa trouxe para sua ficção fatos históricos do século em que Eça de Queiroz viveu. “A protagonista feminina, Dona Ana Olímpia, é baseada em Ana Umbertali, uma das mulheres mais ricas de Angola no século 19. “O interessante é que Dona Ana chegou a Luanda como escrava. No século 19, Luanda tinha uma forte burguesia negra e mestiça – antigas famílias urbanas –, que havia enriquecido sobretudo com o comércio de escravos”, conta.
Outra inspiração veio da poderosa mestiça Ana Joaquina, dona de grandes propriedades em Angola e no Brasil. “Essa é até hoje uma figura bem conhecida em Angola. O Palácio de Dona Ana Joaquina acolhe hoje o Tribunal de Luanda”, comenta.
Agualusa revela que gostaria de reescrever este romance. Há alguns anos, o escritor usou “Nação crioula” como base para o roteiro encomendado pelo cineasta Andrucha Waddington, diretor dos filmes “Casa de areia” e “Eu, tu, eles”. “Acabei encontrando algumas soluções melhores do que aquelas que estão no livro. A protagonista feminina poderia crescer mais, é uma personagem fascinante, muito rica e complexa.”
Africano, pai de três filhos negros – de 3 a 24 anos –, Agualusa acredita que a sociedade tão criticada por Eça de Queiroz no século 19 está evoluindo. Para ele, o movimento antirracista Black Lives Matter, que tem mobilizado o mundo, “só peca pelo atraso”. Comenta que os filhos mais velhos têm mentalidade mais avançada do que sua geração no que diz respeito ao racismo, ao feminismo, e o respeito pela diversidade sexual.
“Aprendo muito com os meus filhos. Essa juventude justifica o meu otimismo. Obviamente, todos os grandes avanços éticos e filosóficos suscitam movimentos de inquietação e de reação. Por vezes esses movimentos conseguem alcançar o poder e protagonizam súbitos recuos civilizatórios. É o que está acontecendo hoje no Brasil, para susto e desgosto do mundo inteiro”, afirma Agualusa. “A boa notícia é que esses movimentos estão condenados ao fracasso, como sempre aconteceu ao longo da história.”
BRASIL
“Os bárbaros não vencerão”, garante Agualusa, otimista em relação aos brasileiros. “O Brasil é um país abençoado pela alegria e pelo otimismo africano. Será essa porção africana a salvar o Brasil – através da música, através do riso, através do sexo, através da força revolucionária do amor.”Autor de “A sociedade dos sonhadores involuntários” (2017), Agualusa diz que o sonho é mais necessário do que nunca. “Todos os grandes movimentos cívicos, todas as grandes descobertas começam com alguém sonhando. Precisamos criar novas utopias. Nesse meu romance, a revolução acontece, o ditador é derrubado no instante em que as pessoas aprendem a sonhar em conjunto – quando elas se juntam para desenvolver o mesmo sonho”, comenta.
“No caso de Angola, caiu mesmo. E a queda dele começou quando um grupo de jovens se juntou para ler livros e discutir utopias. Quando um grupo de jovens se juntou para sonhar”, conclui o discípulo do visionário (e subversivo) Eça de Queiroz.
“LETRA EM CENA ON-LINE:COMO LER EÇA DE QUEIROZ”
O escritor José Eduardo Agualusa conversa com o jornalista José Eduardo Gonçalves, curador do programa literário do Centro Cultural Unimed-BH Minas. Nesta terça-feira (17/08), às 20h, com transmissão pelo canal oficial do Minas Tênis Clube no YouTube (youtube.com.br/minastcoficial). Gratuito.
“A RELÍQUIA”
De Eça de Queiroz
Editora Unesp
256 páginas
R$ 50
“A CIDADE E AS SERRAS”
De Eça de Queiroz
Editora Ática
224 páginas
R$ 25
“OS MAIAS”
De Eça de Queiroz
Editora Garnier
530 páginas
R$ 89